Menos é mais

Pandemia ampliou sensação de desconforto gerada por acúmulo de pertences

Rotina mais caseira fez com que pessoas percebessem que possuir menos utensílios, roupas, calçados e outros apetrechos pode significar mais conforto no ambiente doméstico ou de trabalho


Publicado em 14 de outubro de 2020 | 03:00
 
 
 
normal

Era setembro quando a comunicadora Patrícia Gameiro, 35, acordou sobressaltada e incomodada com a sensação de que precisava comprar toalhas novas, pois as que tinha em casa não lhe pareciam suficientes. A recifense não pensou duas vezes e foi às compras. Quando voltou para casa, sentiu-se “horrorizada” – como ela mesma descreve – ao se dar conta de que possuía em seu guarda-roupa várias toalhas, muitas delas novas. “Como eu não percebi isso?”, questiona-se agora, oferecendo logo uma explicação: Patrícia reconhece ter dificuldade de conter o impulso consumista ao mesmo tempo em que demonstra grande apego por seus pertences, sejam eles quais forem. Há um tempo, quando saía de casa, costumava aceitar todos os panfletos, cartões de visita e bilhetes oferecidos a ela. Chegava com a bolsa cheia de papéis e tinha dificuldade de dar a eles algum destino que não fossem suas gavetas e armários. 

Hoje, o desejo de armazenar coisas em casa se arrefeceu diante de um esforço cotidiano. Desde 2017, quando temas como o transtorno de acúmulo, a organização doméstica e um estilo de vida mais minimalista começaram a ganhar popularidade, Patrícia passou a se inteirar desse debate. “Foi quando comprei o livro da Marie Kondo e passei a realizar pelo menos duas faxinas por ano, buscando praticar esse desapego”, explica, fazendo menção à obra “A Mágica da Arrumação” (2015) da guru japonesa que criou métodos para colocar a casa em ordem. 

Desde que a pandemia exigiu medidas como o isolamento social e a quarentena tornou-se uma realidade, a comunicadora percebeu que, apesar dos avanços, ainda teria muito trabalho pela frente. “Ficando mais em casa, notei que, se tivesse menos coisas, teria um ambiente mais confortável. Mas, ao mesmo tempo, comecei a ter dificuldade de me desfazer de alguns itens porque não queria simplesmente descartá-los, poluindo o meio ambiente. Então, acabei entulhando ainda mais coisas nesse período”, diz, refletindo sobre a dificuldade de dar destinação ideal para alguns produtos. 

Em relação à acentuação da sensação de desconforto proporcionada por uma rotina mais caseira, Patrícia não está sozinha. “Temos alguns indicadores que as pessoas, ao ficarem mais tempo em casa, estão realmente incomodadas e com um aumento na desorganização”, garante Jacqueline Moreno, pedagoga e consultora de organização em ambientes residenciais e empresariais que faz atendimentos em parceria com a psicóloga Simone Felipe, especialista em terapia cognitivo-comportamental. Ela detalha que algumas organizadoras profissionais têm sido procuradas com demandas sobre o aumento de acúmulo na família. “Ainda não temos estudos, mas parece que estar encerrado em um mesmo ambiente, por muito tempo, provocou mal-estar e preocupação nos familiares com relação aos excessos”, diz. 

“Uma preocupação que temos está associada ao fato de que a acumulação se acentua depois dos 45 anos e, com a pandemia, temos muitas pessoas acima de 50 isoladas. Se esse indivíduo tem tendência a acumular, estando sozinho e com menos pessoas no seu convívio, este problema pode se ampliar. Além disso, muitos dispensaram os funcionários de limpeza”, examina Jacqueline. Uma outra frente que pode levar a um maior acúmulo é a dificuldade com o descarte correto de itens. “Com o aumento do consumo de delivery, percebemos que muitos passaram a guardar todo tipo de embalagens – e isso pode estar entulhando as casas”, pontua. 

Fatores socioculturais e armadilhas podem levar à acumulação

A arquiteta e personal organizer Jessica Espíndola entende que há uma explicação sociocultural para o fato de o apego a pertences ser mais recorrente entre idosos. “Precisamos lembrar que era mais difícil comprar algo e muitas dessas pessoas passaram mais dificuldades. Então, elas acabam manifestando mais empecilhos em desfazer das coisas, pois colocam isso na balança. É como se pensassem: ‘Demorei tanto para comprar esse objeto, não posso me desfazer dele agora’”, opina. 

As novas gerações, examina Jessica, têm desconstruído essa lógica. “Hoje, os jovens tendem a ser mais desapegados. Eles entendem que as memórias não estão nas coisas e que não precisam delas para se lembrar de momentos especiais”, argumenta.

Já Cristina Dumont, administradora e personal organizer, acredita que os armários podem ser uma armadilha, pois permitem um oculto acúmulo desordenado de bens. “Como tudo fica escondido e toda aquela bagunça não fica visível, podemos acabar apenas estocando coisas dentro desses móveis. Depois, além de ser difícil encontrar algum item, quando nos damos conta que a situação está fugindo do controle, acabamos com preguiça de reorganizar tudo - o que, de fato, exige esforço”, cita. Por isso, não é incomum que pessoas pensem em investir em novos armários quando, na verdade, colocar os pertences em revista seria mais efetivo.

Quando a acumulação passa a ser uma doença

“Podemos dizer que, sim, todas pessoas têm alguns objetos de apego. Mas isso é bem diferente de ser um acumulador”, assegura Jacqueline Moreno. A profissional da organização observa que, “na sociedade moderna, baseada no consumismo, a maioria das pessoas adquire muito; mas, para a maioria, não é difícil gerenciar essas posses. A pessoa afetada pelo transtorno de acúmulo, por outro lado, fica angustiada só de imaginar em se desfazer de seus itens. Isso vai lhe parecer insuportável”, diferencia. 

O transtorno de acumulação compulsiva já se encontra classificado na última versão do manual de diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5), sendo identificado como uma dificuldade persistente de se desfazer ou se afastar de posses materiais devido a uma necessidade imaginária de poupá-las. Trocando em miúdos, os chamados “acumuladores” são pessoas que têm muita dificuldade em resistir à aquisição e guardam uma quantidade excessiva de coisas. “É como se perdessem o controle sobre seus pertences e passassem a ser controladas por eles”, resume Jacqueline. 

“O acúmulo se torna um problema quando começa a afetar a qualidade de vida do indivíduo e, também, suas relações afetivas, familiares e/ou profissionais. Eles começam a lotar os espaços, às vezes compram excessivamente (até mesmo além de suas possibilidades financeiras), afastam-se das pessoas, não recebem visitas e comprometem a sua segurança com o excesso de itens adquiridos e com a falta de cuidado com a manutenção da casa. É muito comum que alguns familiares passem a não suportar a convivência com eles, o que aumenta o isolamento em que vivem”, analisam Jacqueline e Simone Felipe.

Identificando e tratando pessoas em situação de acumulação
 
Tanto os familiares e pessoas próximas como um profissional da organização podem identificar o problema e avaliar o grau de acúmulo, mas o diagnóstico do quadro de saúde só pode ser conferido por um médico psiquiatra. Na maioria das vezes, quem identifica o problema e procura por ajuda são pessoas próximas, pois costuma ser difícil que o sujeito afetado pelo transtorno de acumulação busque algum auxílio por iniciativa própria – muitos não compreendem a gravidade daquele comportamento, observa Jacqueline Moreno. 

“Quando percebemos que uma pessoa está acumulando objetos em excesso, a primeira coisa a fazer é evitar rótulos como ‘acumulador’, ‘doente’ ou termo parecido”, observa a profissional, que alerta: esse não é o melhor caminho: “Não adianta brigar ou xingar. O melhor é buscar ajuda com especialistas, como personal organizers e, a depender do quadro, psicólogos e psiquiatras”, aconselha. 

A situação ideal, indica Jacqueline, inclui uma combinação de esforços. “O psicólogo, por um lado, está apto a lidar com questões emocionais, fatores de personalidade e outras questões subjetivas. Por meio de intervenção terapêutica, esse profissional pode contribuir para o desenvolvimento de formas de lidar com problemas específicos que motivaram a acumulação”, sinaliza. “Já o personal organizer entra na casa e no ambiente da pessoa e pode avaliar, de forma objetiva, a proporção da desordem, as possíveis obstruções, a presença de riscos. Além disso, vai ajudar a pessoa afetada pela desorganização a identificar o melhor sistema de organização e desenvolverá o trabalho de organização junto com esse sujeito”, completa. 

Pesquisas. O transtorno de acumulação vem sendo estudado sobretudo no campo da psiquiatria e, principalmente, nos Estado Unidos. É o que informam Jacqueline Moreno e Simone Felipe, que se debruçam sobre o tema no Brasil. Elas lembram que os estudos indicam que vivências traumáticas podem contribuir para a acumulação. Mas não há uma causa única para o desenvolvimento do transtorno, que pode estar presente por si só ou como um sintoma de outro distúrbio. Os sintomas costumam começar a se manifestar na adolescência, sendo que os prejuízos são mais visíveis na vida adulta.

“A organização exterior reflete na organização interior”

“Meus clientes relatam, com muita frequência, que a organização do ambiente traz para eles uma sensação de leveza e de equilíbrio”, orgulha-se a personal organizer Cristina Dumont, que defende: “Sem dúvida, a organização externa reflete na sua organização interna”.

E como alcançar esse nirvana da arrumação de ambientes domésticos ou de trabalho? “A melhor dica para a pessoa que vai se dedicar a essa organização sozinha é fazer as tarefas por categoria”, aconselha Jessica Espíndola. “Na parte de vestuário, por exemplo, podemos pegar só blusas ou só calças. Na cozinha, primeiro separar apenas os talheres ou as panelas. Assim, com tudo separadinho, será possível identificar se há uma quantidade excessiva daquele item, de quais verificar de quais eu gosto mais”, diz. E se o modelo da roupa é confortável ou se os utensílios estão em bom estado, é hora de partir para outro critério. “Podemos nos perguntar: faço uso frequente daquele item? Ou será que ele seria melhor utilizado por outra pessoa?”, recomenda a personal organizer.

A partir desse inquérito torna-se mais confortável dar destinação aos objetos. “Alguns vão continuar conosco, outros vão para o lixo e para a reciclagem. Há itens que podem ser doados e até aqueles podem até ser vendidos”, sinaliza Jessica. Ela ainda acrescenta que outras questões podem facilitar na lida com o desapego: “Para além de pensar se uso ou não uso aquela peça, temos que verificar se gosto dela e se cai bem para o meu corpo ou se gosto dela na minha casa. São perguntas que vão gerar reflexão e, com isso, conseguimos descartar muitas coisas”, garante.

Evitar acumulação é uma atividade rotineira

Não basta realizar uma ou outra faxina ocasionais. O ideal, para manter o ambiente organizado, é criar uma rotina atenta a esse cuidado. “O mais difícil e também o mais importante é dar o primeiro passo e se propor a criar o hábito do desapego. Quando você entra nesse ritmo, aquilo passa a fazer parte do seu estilo de vida”, avalia Cristina Dumont.

Jessica Espíndola concorda. “Desacumular coisas exige um esforço consciente, é um trabalho diário”, diz. Mas há estratégias que ajudam a formatar esse novo modo de lidar com nossos pertences. “Uma dica é anotar uma data na agenda para fazer essa vistoria na casa. É interessante revisitar os armários de seis em seis meses porque já se passaram as estações, então posso verificar o que quero ou não manter”, sugere a personal organizer. 

Além da escolha de uma data para “faxinar” os ambientes, vale dedicar uma atenção mais cotidiana aos objetos. “Se, no dia a dia, você não gostou de um item ao utilizá-lo, já retirar ele e dar outra destinação”, aconselha. Jessica recomenda sistemas que funcionam para que a organização se mantenha. “Devemos pensar porque cada objeto está em cada lugar, pensando em guardar cada coisa de forma que fique de fácil acesso. Também é recomendável etiquetar os objetos, dando nome para cada coisa”, diz.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!