Mudança

Pandemia, política e tecnologia reconfiguram relações amorosas

Pesquisa norte-americana identificou mudanças de comportamento entre pessoas solteiras que buscavam novos parceiros


Publicado em 05 de novembro de 2020 | 03:00
 
 
 
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Em um mundo que foi obrigado a refazer rotinas e a rever hábitos para conviver com uma pandemia, em um planeta cada vez mais politicamente polarizado, em um tempo em que dinâmicas socioculturais são reorganizadas pelo advento de novas tecnologias, surge a questão: como subjetividades e aspectos de uma dimensão mais íntima da vida ficam implicados pelo contexto vivenciado? Como ficam os relacionamentos afetivos em uma época em que o distanciamento social é uma realidade, seja por razões sanitárias ou políticas? 

Na tentativa de oferecer instrumentos para responder a tais perguntas, o grupo norte-americano Match.com – que está por trás de populares aplicativos de relacionamento, como o Tinder – publicou recentemente a pesquisa “Singles in America”, em que entrevistou milhares de pessoas solteiras nos Estados Unidos para saber como pandemia, política e tecnologia afetaram as formas de se relacionar. 

De acordo com a nova etapa do estudo, que vem sendo atualizado ao longo dos últimos dez anos, é possível perceber uma desaceleração: 63% dos participantes disseram estar gastando mais tempo na intenção de encontrar parceiros potenciais. Além disso, metade dos jovens nascidos entre a segunda metade dos anos 90 até o início do ano 2010, a chamada geração Z, diz ter buscado manter conversas mais profundas antes de partir para encontros presenciais. É também notável a busca por compromissos mais sólidos: 53% dos respondentes garantem buscar por relações assim. E até os atributos que buscam no outro passaram a ser reavaliados: 52% reconhecem que passaram a reavaliar seus critérios e considerar uma variedade maior de pessoas para se relacionar, e 49% das pessoas entre 39 e 24 anos, os millennials, dizem, agora, focar menos a atração física. 

“A pandemia alterou o modo de buscar relacionamentos não só das gerações Z e dos millennials, mas de todos”, avalia a psicóloga e sexóloga Enylda Motta. “O maior tempo de interação e de autoconhecimento (em função do isolamento social que foi realidade para parte da população) ajuda a compreender essas mudanças. A busca (por parceiros), na ociosidade do tempo, faz com que as pessoas possam dar mais ‘matches’ (combinar, formar um bom par com alguém), gastar mais tempo conhecendo o outro, investigando se há pontos em comum, para depois dar um próximo passo”, completa ela, que vê paralelos entre os apontamentos da pesquisa norte-americana e a realidade que percebe em sua rotina de atendimentos clínicos e da troca de experiências com colegas. 

A estudante de letras Camila Lopes, 25, que é usuária do Tinder, reconhece em si essa desaceleração. “Tenho tentado conhecer as pessoas e suas histórias mais a fundo para saber quem são e como são”, comenta. Contudo, adverte que o comportamento não é uma regra: “Continua sendo bem difícil que (esse investimento de atenção e de tempo) seja recíproco. As relações líquidas continuam aí”, observa, fazendo menção a um conceito criado pelo filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que, de maneira resumida, diz de um comportamento amoroso muito próximo ao dispensado a bens de consumo, em que as relações são mantidas enquanto parecem satisfatórias, sendo substituídas diante da promessa de uma outra dinâmica que traga mais satisfação.

Pensar e repensar. Há mais ecos dessa radiografia sociocultural norte-americana proposta pela pesquisa na sociedade brasileira, aponta Enylda Motta. Para ela, “2020 veio com mudanças para todos, em todos os sentidos”. A sexóloga indica ter observado uma mais frequente valorização das relações mais duradouras, mas lembra que outras tantas pessoas não deram conta dessa solidez e desfizeram laços.

“Com as mudanças, as pessoas tiveram (e ainda têm) mais tempo para pensar em como estão vivendo, se conseguem se ver com a mesma pessoa ‘até que a morte nos separe’, se o sexo está bom ou se não está, se existe possibilidade de melhora ou não, se o relacionamento é saudável ou abusivo…”, sinaliza. Pelo que se observa no estudo da Match.com, dá para dizer até que muitos puderam pensar e repensar essas relações: se, por um lado, 26% ficaram solteiros durante a pandemia, por outro, 25% foram procurados por ex-parceiros no mesmo período. 

Qualidade da relação e fatores políticos têm sido mais considerados 

A qualidade das relações também se tornou fator decisivo, conforme se pode inferir por meio dos dados levantados pela Match.com. Tanto que – por mais que dois terços dos solteiros tenham garantido estarem prontos para voltar a namorar – 36% admitem que estão mais seletivos. E, neste ponto, a política passou a ter peso maior. Hoje, 76% buscam parceiros que tenham as mesmas crenças e preferências políticas – um aumento de 25% em relação aos dados de 2017. Mais: nos Estados Unidos, a aderência do potencial parceiro à defesa da igualdade e contra a violência racial, representadas pelo movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em português), é importante para 59% dos entrevistados – princípios que são especialmente importantes para os millenials (66%) e para a geração Z (74%). 

A combinação entre implicações da pandemia e posicionamentos políticos, aliás, já se mostrava preponderante em uma reconfiguração das relações afetivas e sexuais, como mostrou uma reportagem de O TEMPO publicada em maio. Ocorre que, conforme apurou o jornal, pessoas que respeitavam os protocolos de saúde recomendados por autoridades sanitárias tendiam a querer estabelecer vínculos apenas com aquelas que também respeitavam essas novas regras. Agora, mesmo depois que a crise mais aguda provocada pela doença tiver ficado no passado, a regra parece se manter para parcela da população. “Procuro encontrar alguém que manifeste um pouco de empatia e de cuidado com o próximo. Se alguém não cuida de si próprio agora e nem pensa no próximo, imagina como seria em um relacionamento”, reflete a estudante Camila Lopes, que não esconde: a postura política tem peso na escolha de futuras parcerias. 

Tendência de virtualização dos vínculos é acelerada pela pandemia

Outro aspecto que a pesquisa põe em relevo é o uso mais frequente da tecnologia. Entre os respondentes, 68% fizeram chamadas de vídeo antes de ir a um encontro. E a qualidade da experiência virtual pode ser determinante para que essas pessoas desistam de se conhecer presencialmente ou para que se apaixonem. Algo que, diga-se, não foi incomum: metade dos entrevistados admitiu ter desenvolvido sentimentos mais profundos por parceiros durante essas conversas a distância. 

A acentuação do uso de recursos tecnológicos para se estabelecer vínculos já vinha sendo apontada como um legado da pandemia por especialistas. Também em maio, uma reportagem de O TEMPO ouviu o doutor em antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Victor Hugo de Souza Barreto, que foi categórico: “Uma das poucas certezas sobre as mutações da sexualidade nesses tempos é a virtualização dos desejos e das práticas. Não é como se a gente tivesse criando algo novo, mas há um crescimento exponencial no uso desses recursos”. 

As razões, aponta o autor do texto “Pandemia, sexualidade e percepção do risco: algumas notas sobre quarentena e desejo”, podem ser diversas: “maior tempo livre, tédio, estímulo à comunicação em um momento de isolamento, satisfação de alguma forma de libido e, até mesmo, a complementação da renda”, enumera. O sexólogo da divisão de clínicas ginecológicas do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) Theo Lerner concorda. Para ele, a Covid-19 acelerou esse processo de digitalização. “São tendências que já estavam se esboçando e que, em algum grau, vão ficar”, pondera.

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