Literatura

Peregrinação em dose dupla

“Nos Pirineus da Alma narra caminhada do jornalista Alberto Sena em Santiago de Compostela


Publicado em 06 de fevereiro de 2018 | 03:00
 
 
 
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O Caminho de Santiago de Compostela ainda hoje provoca curiosidade mística, embora o sentido religioso da peregrinação venha se perdendo. O que move peregrinos de todas as partes do mundo e de todas as idades em uma caminhada de 800 km? Superação, fé, religiosidade, aventura, conhecer outro país, pessoas e culturas, ficar sozinho, repensar a vida ou dar novo sentido a ela?

O jornalista e escritor Alberto Sena, 68, jamais havia cogitado fazer essa caminhada até que, em 2001, leu uma matéria sobre a peregrinação, e o caminho percorrido por são Tiago o fisgou. Com determinação e organização próprias de virginiano, viajou para São Paulo, visitou a Associação de Confrades e Amigos do Caminho de Santiago de Compostela e voltou com o passaporte, acessórios e informações para colocar os pés na estrada. Na academia preparou o corpo.

“Tudo aconteceu de forma muito rápida. Senti uma vontade tremenda de fazer o caminho, na verdade foi o contrário, o caminho é que me chamou. Naquele momento da vida me sentia como um cano de pvc vazio. A água que passava pelo cano não vinha de mim, mas através de mim”, relembra o jornalista que, acompanhado da mulher Sílvia Batista, saiu de São Paulo para Madri e, de lá, um tomou um trem para Burgos, onde iniciou a caminhada de 500 km em 17 dias até Santiago de Compostela.

Desde o início a ideia foi fazer o caminho a pé. “Estamos perdendo a capacidade de contemplação. Em “O Homem e seus Símbolos”, Carl Gustav Yung diz que apenas contemplando a natureza o indivíduo adquire a capacidade de amar a natureza humana, e esse sentimento foi ficando bem claro durante o percurso, essa troca de energia com os lugares e com as pessoas. Tenho convicção de que recebi um chamado espiritual, que aquela jornada era também interior”, diz Sena.

Houve momentos em que ele se sentiu incapaz de avançar. “Estava muito cansado e cheguei mesmo a questionar o que estava fazendo ali. Tudo isso faz parte do processo de peregrinar”, comenta o jornalista.

Mas, como dizia Antônio Machado, “caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar, e ao voltar a vista atrás se vê a senda que nunca voltará a pisar”. E o jornalista retornou um ano depois, dessa vez iniciando o caminho em Saint-Jean-Pied-de-Port, na França, até Santiago de Compostela, 800 km realizados em 25 dias. No total, o casal caminhou 1.300 km em 40 dias.

Dessa vez, o perrengue aconteceu logo no início da caminhada, nos Pirineus. “Pegamos uma trilha errada, e o frio era intenso. Escorreguei e caí dentro de um córrego de água congelada. Tive início de hipotermia, os pés e as mãos estavam congelados. Fiquei um tempo dentro do saco de dormir para tentar me aquecer. Estava muito sonolento. De repente vimos duas pessoas caminhando em uma estrada mais acima e encontramos a trilha. Eram duas mulheres belgas que me ofereceram chocolate. Melhorei um pouco”, relembra Sena.

Ele conseguiu chegar em Puerta de Ibanheta, onde há um monumento em memória das 4.000 pessoas que morreram em um conflito. “Debaixo de forte névoa chegamos em Roncesvalles, onde assistimos à tradicional missa do envio, celebrada por vários padres em uma igreja iluminada apenas pela luz de velas, com a intenção de abençoar os peregrinos”, conta Sena.

 

Sonho com o papa Francisco

Por sua própria natureza, Alberto Sena não esperava nada miraculoso em sua peregrinação, pois não acredita em anjos alados, mas que Deus usa as pessoas para falarem aquilo que Ele quer para nós. E um encontro insólito ficou marcado para sempre em sua memória.

“Havíamos deixado Virgem Del Camino e seguíamos por uma lavoura de trigo ainda verde de onde tínhamos visão de 360°. Não havia mais ninguém além de nós, mas ouvimos um canto gregoriano. Eis que, de repente, surge um homem magro, 75, vestido de blusão bege e calça cinza, indumentária própria de quem tinha costume de fazer caminhada, com cantil azul na cintura, boina na cabeça, óculos de grau e seu cajado. Era o padre Patrick, um australiano. Caminhamos juntos e, antes de se despedir, disse que voltaríamos a nos encontrar em Astorga e em Santiago de Compostela. Havia nele algo de mágico. E realmente os encontros previstos por ele aconteceram”, relembra o jornalista.

Para ele, o caminho é mágico, místico e simbólico, e é importante percorrê-lo em silêncio, refletindo, meditando, contemplando. Enviei um exemplar do livro ao papa Francisco e tive um sonho premonitório, em que ele estava ao meu lado, segurando-o, e me abençoou. Estou certo de que isso vai acontecer e que vou retornar ao caminho pela terceira vez”, espera Sena.

 

Decisão foi um chamado espiritual

Após muita aventura, espiritualidade, filosofia e poesia, o jornalista Alberto Sena retornou a Grão Mogol, norte de Minas, onde estava morando. Somente lá é que veio a ideia de escrever o recém-lançado “Nos Pirineus da Alma”, edição independente com 192 páginas, sendo 32 com fotos.

“Paulo Coelho escreveu uma ficção, pois nunca fez o Caminho de Santiago de Compostela. Eu andei 1.300 km, tudo que está no livro foi real. Não fui para lá com a intenção de resolver um problema psicológico ou espiritual, pois desde criança nunca tive do que reclamar, só se fosse burro. Fui atendendo a um chamado espiritual, e hoje tenho certeza que foi para a glória de Deus, para agradecer pela vida e pelo que eu sou. Minha religião chama-se Jesus Cristo, não me coloco nem como cristão ou católico. Ele deixou a porta escancarada e jamais iria me negar alguma coisa. Ele é minha razão de viver. Hoje não tenho apenas fé em Jesus, eu O sinto dentro de mim”, conta o jornalista.

 
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“Nos Pirineus da Alma”, Alberto Sena, 192 páginas, sendo 32 com fotos, R$ 60

 

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