“Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser”. Foi essa frase, do navegador e escritor brasileiro Almir Klink, que, na adolescência, inquietou Lívia Tostes e despertou nela o desejo de pôr o pé na estrada. Hoje, aos 33 anos, a redatora web e social media acumula como destinos 12 países e mais de 40 cidades.
Nem precisa dizer que, após cerca de um ano e meio de pandemia, sem conseguir explorar novos trajetos, Lívia se viu abatida por uma sensação de quase abstinência. Mas isso não significa que, nesse tempo, ela não tenha se planejado para, assim que possível, programar roteiros a serem feitos.
“Meu maior lazer durante os períodos de quarentena foi ficar olhando passagens aéreas e pensando qual país vou visitar no pós-pandemia”, comenta, acrescentando que está no radar dela um mochilão, por um mês, por países do Leste Europeu. “Todo esse contexto só aumentou meu desejo de colocar a mochila nas costas e cair no mundo, já que agora eu trabalho (em regime de) home office”, pontua.
A exemplo do relato de Lívia, é sensível como os longos períodos de restrição impostos pelas necessárias medidas de enfrentamento da Covid-19 afloraram a ânsia de viajar entre os brasileiros que tem predileção por “turistar”. É o que expõe uma pesquisa realizada pela plataforma de reserva de acomodações Booking.com, que ouviu quase 30 mil pessoas, de 28 nacionalidades, que pretendem viajar nos próximos 12 meses.
De acordo com o levantamento, na ordem de prioridades, pegar a estrada aparece no topo em detrimento de várias alternativas.
No país, 74% disseram preferir viajar a encontrar o verdadeiro amor. Índice que coloca os brasileiros na sexta posição, empatados com os italianos, entre as nações que priorizam viagens em relação a encontrar alguém especial. Além disso, 62% dos entrevistados no Brasil abrem mão de comprar um carro para ter uma experiência turística. E 51% dizem que escolheriam uma viagem em vez de uma promoção no trabalho.
Confrontada com esses dados, Lívia se identifica. “Sem dúvida, me sinto representada”, comenta ela, que fez sozinha boa parte das viagens listadas. “Me despi de vários medos e de timidez, conheci um novo eu que havia dentro de mim. Parece clichê dizer isso, mas isso é realmente transformador. Passei a gostar mais de mim e da minha própria companhia. A gente não precisa de um ‘grande amor’ para ser feliz. Nada contra com quem pensa o contrário, mas vejo muitos ‘grandes amores’ acabarem a todo o momento”, opina, inteirando que, mesmo que se engaje em uma relação, não pretende deixar de viajar sozinha.
“Sobre uma promoção no trabalho, sem dúvida, eu prefiro viajar”, garante, completando que o crescimento profissional é, sim, algo desejado. “Mas isso geralmente traz mais responsabilidades e menos tempo disponível. E é preciso saber dosar a vida pessoal com a vida profissional. Para quem sabe fazer esse balanço neste momento atual que a sociedade vive, eu tiro o chapéu. Eu não soube. Vivia para o trabalho, com horário de entrar, mas nunca de sair. Comecei a ver minha vida cada vez mais estressante. Portanto, se precisar escolher entre uma promoção e uma viagem, não tenho dúvidas do que escolher”, comenta.
Viajar é urgência
Os dados apurados pela Booking.com também não surpreendem o psicólogo Tiago Henrique, pós-graduado em psicomotricidade clínica e relacional. “Eu mesmo sinto essa urgência de viajar, o que tem muito a ver com o que a gente está passando, com esse período de confinamento”, pontua.
“Acho que a pandemia trouxe, para muita gente, uma sensação de gaiola, de forma que a viagem aparece como saída para superar – ou pelo menos expandir – essas grades”, prossegue. Ele acrescenta que mesmo o simples planejamento de uma rota, a ser feita no futuro, pode trazer benefícios, como o conforto em se pensar que as limitações impostas pelo coronavírus estão sendo superadas.
“Claro que viajar não vai resolver tudo, mas já é algo que traz uma sensação de que estamos fazendo algo por nós mesmos. Afinal, nesse tempo, fomos postos diante da nossa fragilidade, da nossa vulnerabilidade. E, ao nos darmos conta disso, ao esbarrarmos, de repente, com a finitude, cresceu em nós a necessidade de curtir a vida”, analisa.
O psicólogo sublinha que, considerando que a pesquisa focou pessoas já empregadas, que poderiam almejar uma promoção, a urgência sentida neste momento não diz respeito ao trabalho – “porque é algo que a gente já está levando para casa”. Da mesma maneira, a busca por novas parcerias também perseverou de alguma maneira nesse período, mesmo que, para alguns, ficasse limitada aos relacionamentos virtuais. Portanto, Tiago lembra que, entre as alternativas propostas na entrevista, as atividades de turismo foram, para muitos, a dimensão da vida mais afetada pela pandemia.
Ao mesmo tempo, é preciso considerar que, hoje, a sociedade prioriza investir em experiências ao em vez de consumir – fenômeno que já foi vastamente demonstrado em diversos estudos de mercado. Por isso, para boa parte dos millennials e da geração Z, faz mais sentido gastar com uma viagem do que com a aquisição de um carro.
Benefícios
Aos olhos da ciência, quando há condições sanitárias para tal, viajar faz bem. Um estudo feito na Coreia do Sul, que entrevistou 225 turistas intercontinentais, por exemplo, apontou que a sensação de satisfação pela vida começa a aparecer antes mesmo de colocar o pé na estrada. Precisamente, em média, os viajantes são tomados de satisfação 15 dias antes de iniciar um novo roteiro. Esse contentamento dura, pelo menos, cerca de um mês após o retorno.
Outra pesquisa, publicada pela Academy of Management Journal, indicou que o turismo favorece a criatividade. Segundo a Escola de Negócios da Universidade de Columbia, em Nova York, marcas do universo fashionista dirigidas por pessoas que viveram e trabalharam em diferentes países tinham peças mais criativas e inovadoras. Para os estudiosos, isso ocorre porque viajar nos força a pensar de formas diferentes,