“Após a viuvez, eu não procurava um novo relacionamento, até porque não queria nada que fosse superficial. Tenho meus filhos, que moram comigo, e eu prezo minha relação com eles. Entendo que esse cuidado seria incompatível com qualquer intenção de sair para bares, limitando minha disposição para conhecer novas pessoas”, recorda-se Henrique Carabetti, 45, que, no fim de março do ano passado, perdeu sua primeira esposa, vítima de um câncer de mama triplo-negativo, que gerou metástases no pulmão, cérebro, fígado e medula. “Foram quase dois anos de tratamento de quimioterapia, radioterapia e cirurgias, mas, por ser muito agressivo, os procedimentos não alcançaram o resultado desejado”, comenta.
A perda aproximou ainda mais Carabetti de seus dois filhos, Guilherme, 15, e Gabriela, 9. “Fiquei totalmente responsável e por conta deles”, diz. Mas, mesmo que declaradamente não tivesse interesse de se engajar em outra parceria amorosa, foi isso que aconteceu à medida que um novo enlace foi se constituindo pouco a pouco, quase ao acaso. “Tudo aconteceu de forma bem natural. Eu havia ido comprar ração para meus cachorros quando encontrei a Janaína, que eu não conhecia, com quem nunca tinha conversado. Mas, naquele momento, senti vontade de falar com ela”, lembra.
Desde então, não pararam de conversar. “Ela é dona de uma loja de roupa masculina, e eu estava precisando de itens novos. Depois, ficamos mais dois meses mantendo contato sem nos encontrar, o que fortaleceu nosso vínculo e me permitiu perceber que aquele relacionamento não seria passageiro e vazio”, celebra. Na sequência do primeiro encontro, Carabetti e Janaína passaram a planejar a ocasião em que ela seria apresentada aos filhos dele. “Fizemos um passeio em uma cachoeira para ficarmos em um ambiente que todos nós gostamos. Foi um dia agradável, e, a partir daí, começamos a nos encontrar com mais frequência”, diz.
Mas, enquanto no seio familiar não há queixas sobre o namoro do pai, fora de casa a história é diferente. “Percebi, com clareza, o preconceito de algumas pessoas ao me verem com a Janaína. Alguns fizeram da nossa relação motivo de discussão”, queixa-se.
Segundo a psicanalista e mestre em psicologia Renata Gatto, a situação vivenciada pelo casal está longe de ser uma exceção. “Muitas vezes, a pessoa que, após a perda do cônjuge, inicia um novo relacionamento é julgada. No imaginário social, parece haver a fantasia de que o novo enlace é sinal de desrespeito e invalidação do anterior. Todavia, recomeçar não significa que o relacionamento pregresso não tenha tido importância, mas que quem ficou ainda está vivo e pleno de desejos. Há inúmeras formas de honrar o que se passou sem abrir mão da própria existência”, crava.
Já o psicólogo Rodrigo Tavares Mendonça, especialista em psicoterapia de famílias e de casais, sublinha que o preconceito em relação a uma pessoa que, após a viuvez, se apaixona por outra pessoa é, hoje, significativamente menor. “A sociedade está mudando e aceitando com mais facilidade a liberdade de vivenciar o amor de forma livre, embora possamos observar algum retrocesso conservador nos tempos mais recentes”, reflete. Ele acrescenta que é importante fazer um recorte de gênero ao falar desse tabu. Mas, ainda assim, avalia que o padrão cultural que coloca a mulher como posse do marido, mesmo após a morte dele, devendo ela ser fiel tanto a ele quanto à memória dele e viver dedicada aos filhos, está se dissolvendo.
Viver o luto
Para constituir relações saudáveis após a viuvez, Rodrigo Tavares Mendonça destaca a importância de se vivenciarem os rituais de luto. “Estamos falando de algo que pode significar honrar a pessoa que se foi e valorizá-la. Essa valorização pode permitir que a pessoa que ficou continue a vida sem uma espécie de dívida. Por outro lado, evitar o luto – deixando de comparecer ao velório ou ao enterro, por exemplo – pode significar uma não aceitação da partida, uma não despedida. Assim, a pessoa que ficou vive sem viver, sem aceitar a vida e a realidade. Nenhuma construção de futuro é possível sem que a despedida tenha sido feita”, argumenta.
Renata Gatto também destaca que esta é uma experiência crucial para a elaboração da perda. “Trata-se de um processo doloroso, que precisa ser experienciado plenamente após uma perda significativa”, pontua, detalhando que esse processo segue uma estrutura mais ou menos comum. “Inicialmente, há um sobreinvestimento no objeto perdido, ou seja, o sujeito dedica mais libido ao objeto do que nunca. Posteriormente, um desinvestimento começa pouco a pouco a ocorrer e, finalmente, um reinvestimento em novo(s) objeto(s) de amor”, examina.
Apesar das características universais, a psicanalista pondera que cada sujeito vai vivenciar o enlutamento a seu modo e no seu tempo. “Algumas pessoas elaboram a perda com maior facilidade e conseguem seguir a vida em um tempo considerado menor, o que não quer dizer que a perda não tenha sido significativa”, situa.
“O manual de diagnósticos de transtornos mentais dos Estados Unidos, DSM-5, recomenda o uso de medicação psiquiátrica se os sintomas depressivos do luto durarem mais de 15 dias. Isso é tão absurdo quanto parece, e muitos pesquisadores denunciam a pressão da indústria farmacêutica na estruturação dos diagnósticos e tratamentos médicos. O tempo do luto depende da capacidade da pessoa de se despedir, de aceitar a vida sem a pessoa que se foi. Essa aceitação pode durar dias, semanas, meses ou anos, não existe um tempo adequado, e a tentativa de construir um padrão pode apenas produzir uma pressão cultural sobre a necessidade de realizar o luto rapidamente. A velocidade, aliás, a pressa para ser feliz e tudo o mais, é um dos sintomas da contemporaneidade”, complementa Rodrigo.
O psicólogo sublinha que há desafios particulares às relações construídas após a viuvez. “Um erro comum é o novo cônjuge acreditar que, para a pessoa amar novamente, ela precisa deixar de amar a pessoa que se foi. Honrar a memória da que se foi pode ser importante para realizar a passagem, e, se o novo cônjuge, por insegurança, buscar apagar a memória do falecido, pode dificultar essa passagem e, assim, a construção de um novo relacionamento”, estabelece.
Na outra ponta, “a pessoa enviuvada precisa ser capaz de entender que a nova parceria também possui anseios, interesses e inseguranças. Nesse sentido, é preciso que ambas as partes dialoguem e sejam claras quanto aos seus sentimentos, expectativas e possibilidades”, reforça Renata.
Pulsão de vida. Quando diz que recomeçar não significa esquecer, mas sim que a pessoa que ficou está viva e plena de desejos, Renata Gatto parece descrever a experiência de Henrique Carabetti. “Minha vida, após a chegada da Janaína, mudou bastante. Iniciei dois projetos profissionais – uma loja de roupas e uma casa de vinhos – e retomei minhas atividades físicas, que foram sempre muito importantes na minha vida. Perdi 14 kg, e minha capacidade física melhorou bastante, me sinto melhor do que quando eu estava no meu auge e corria meia maratona”, garante.