Seja em uma fila qualquer, em um ponto de ônibus ou na recepção de um prédio. É provável que o leitor já tenha sido abordado por um desconhecido que busca iniciar uma conversa ou que ele próprio já tenha vivenciado a experiência de tentar iniciar um bate-papo descompromissado com um estranho a fim de ocupar o tempo. E não é preciso ser uma adivinha para saber que, muito provavelmente, uma reclamação tenha sido o recurso usado para quebrar o gelo. Talvez, aquele dia estivesse quente ou frio demais, muito chuvoso ou excessivamente árido. Além disso, a fila poderia parecer lenta, o ônibus talvez estivesse atrasado ou o elevador demorando mais do que se imaginava.

Algo tão comum que pouco se reflete a respeito. Não deixa de ser curioso notar como a lamúria se tornou um artifício para iniciar uma interação. “Quando a gente vai buscar contato com um estranho, busca um ponto de contato. E olha que interessante que esse ponto de contato, tantas das vezes, seja uma reclamação. Isso mostra que esse é um modo de compreender a vida muito comum. Que tendemos a olhar para as coisas resmungando, enquanto raramente dirigimos um olhar de agradecimento”, observa Davi Lago, que é pesquisador da área da filosofia e que lançou, neste ano, o livro “Um Dia sem Reclamar”, que tem como coautor o filósofo e professor universitário Marcelo Galuppo.

Na obra, que fique claro, a dupla não faz apologia de qualquer tipo de síndrome de Poliana, como ficou conhecido o posicionamento daqueles que preferem ignorar problemas e ver apenas o lado positivo de todas as coisas. Ligado ao Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Labô - PUC/MG), Lago reconhece que se queixar ocasionalmente de algo pode ser, inclusive, saudável. Em certa medida, esse ato pode funcionar como uma ferramenta eficiente para a manifestação da indignação, sendo até mesmo o pontapé para um movimento de cobrança por mudanças ou por melhorias. Além disso, trata-se de um mecanismo eficiente para transmitir ao outro o nosso próprio estado de espírito.

O problema é que, não raras vezes, reclama-se por reclamar, como um automatismo. Nesses casos, a lamúria é vazia e não indica nenhum desejo de ação e sequer o objeto gerador de tanto mal-estar é afetado pela insatisfação pronunciada. Um evento climático e meteorológico, por exemplo, não vai deixar de acontecer a depender do estado de humor de um indivíduo – por mais que ele esperneie.

Para Galuppo, por trás de tanto resmungo está a ingratidão, que, por sua vez, está ligada a um desejo muito comum a todas as pessoas: o de estar sempre no controle de toda e qualquer situação. “É muito curioso como, se algo foge do planejado, tendemos a buscar culpados, a achar motivos externos para aquele fracasso. E, então, nos dedicamos a reclamar. Por outro lado, ao conseguir algo, o sujeito apenas busca se convencer de que foi tudo por mérito dele”, sinaliza, indicando que vem daí a tendência de se queixar demais e de se agradecer de menos. O estudioso complementa que essa maneira de agir pode se tornar um entrave ao bem-estar.

Lago ratifica. “Há várias pesquisas demonstrando que o hábito de reclamar é maléfico e tem como efeito, por exemplo, a insônia e até uma baixa de imunidade”, assinala. Na mesma linha, Galuppo lembra estudos “muito substanciais” que mostram que pessoas ingratas são menos felizes do que pessoas gratas. “Penso que, como somos seres relacionais, isto é, estamos o tempo todo fazendo trocas, convivendo, o ingrato passa a ter problemas, pois ninguém quer fazer trocas com ele”, teoriza o filósofo, que busca diferenciar a definição de gratidão da de retribuição. “Enquanto a primeira nos diz de uma capacidade de reagir de determinado modo, a segunda é sobre demonstrar o agradecimento a partir de uma gratificação”, pontua.

O agradecimento como um exercício 

Mas será mesmo possível praticar uma vida menos reclamona e mais grata? “Estamos aqui falando de uma virtude, de uma disposição para se agir de um determinado modo. Então, é plenamente possível se tornar uma pessoa mais agradecida a partir do momento em que nos propomos a fazer escolhas de uma determinada perspectiva”, considera Marcelo Galuppo, lembrando que, no livro, ele e Davi Lago listam sete exercícios que podem auxiliar os leitores nesse percurso.

O filósofo admite que essa mudança não se dá como um passe de mágica. “Não achamos que seja uma coisa fácil e sabemos que continuaremos a ter ações ingratas. Mas, à medida que nos tornamos conscientes dessa postura, essa transformação já começou”, avalia. 

Atemporal. Davi Lago comenta que, durante a pesquisa para a produção do livro “Um Dia sem Reclamar”, se surpreendeu com a recorrência com que o tema havia sido tratado ao longo da história. “É um assunto que aparece nas mais diversas culturas e nos mais diversos momentos históricos, o que só reforça como se trata de algo atemporal”, salienta.