“Eu trabalhava, mas era ele que mexia no meu dinheiro porque dizia que eu não tinha capacidade”. “Já quebrou dois celulares meus, quebrava minhas maquiagens e queimou meus shorts com isqueiro”. “Já estourou meu celular no chão e reteve meus bens (celular e carteira) para eu não sair”. “Misteriosamente minha carteira de trabalho, passaporte e chave do carro sumiram”. Esses são apenas alguns dos vários relatos reunidos no perfil Mas Ele Nunca Me Bateu (@maselenuncamebateu), uma página no Instagram que se define como um espaço para “conscientização, superação, rede de apoio virtual para mulheres” vítimas de todo tipo de violência doméstica. 

Os relatos acima, especificamente, tratam de um tipo de violência muito comum, mas que em muitos momentos pode passar despercebida: a violência patrimonial, um dos tipos de agressão contra mulheres especificada na Lei Maria da Penha. “A violência patrimonial se caracteriza através de atos que afetam emocionalmente a vítima, como por exemplo, furto, destruição de bens, desvio dos bens pessoais ou da sociedade conjugal com o intuito de prejudicar a mulher, inclusive o controle do patrimônio da própria mulher, todos eles cometidos pelo parceiro”, explica a advogada especialista em direito de família e sucessões Thais Câmara.

“Um dos exemplos mais comuns seria a recusa ao pagamento da pensão alimentícia, o controle financeiro do patrimônio do casal ou da própria mulher, privando e subtraindo os bens e valores do patrimônio comum”, cita a advogada. “É violência patrimonial quando o parceiro retém o passaporte ou identidade; não permite acesso às contas bancárias; retém os cartões de crédito; impede/limita o uso do celular; joga o celular/computador na parede ou no chão; destrói objetos da parceira, entre outros”, acrescenta a psicóloga clínica Tatiana Wandekoken, que atua com violência contra mulher. 

Em 2020, um levantamento encomendado pelo C6 Bank ao Datafolha apontou a incidência dos casos de violência patrimonial no Brasil, com mais frequência com mulheres e idosos, durante a pandemia do novo coronavírus e o isolamento social. Na pesquisa, 47% dos entrevistados relataram impedimento para participar de decisões em casa, como aquisição de produtos e serviços; a ameaça por alguém da família com corte de recursos foi citada por 18% das pessoas ouvidas; 37% relataram que tiveram pedidos para recursos financeiros para suprir necessidades pessoais negados por alguém da família.

Violência velada

Uma das características da violência patrimonial é que, na maioria das vezes, não uma agressão física. “Inclusive é isso que vemos nas campanhas de prevenção: hematomas e cicatrizes físicas e materiais daquela violência. Por isso, formas de violência que são mais “veladas”, ou seja, que não deixam cicatrizes visíveis, são mais difíceis não somente de serem percebidas, mas validadas pela sociedade”, pontua a psicóloga Tatiana Wandekoken. Entretanto, isso não quer dizer que outras formas de agressão não sejam praticadas pelo agressor. “Normalmente esse tipo de violência vem associada a outras violências, como a moral e a psicológica, considerando o controle patrimonial feito pelo agressor”, pontua advogada Thais Câmara. “Os estudos sugerem é que a violência psicológica é determinante nessas dinâmicas, ocorrendo na grande maioria dos casos”, completa Tatiana. 

Mas como perceber e identificar esse tipo de abuso? “Os ‘primeiros sinais’ normalmente passam despercebidos. Alguns comportamentos podem ser indicativos, como: excesso de controle e ciúmes. O problema é que esses comportamentos são lidos pela sociedade como ‘cuidado’ e ‘proteção’”, alerta a psicóloga. Essa dificuldade em identificar que se é vítima de violência patrimonial pode contribuir para que muitas mulheres não saiam de relacionamentos abusivos. 

“Romper um relacionamento com violência é extremamente desafiador e não deveria ser imposto à vítima. A única pessoa que é capaz de romper a violência é o próprio autor; a mulher, no máximo, rompe a relação. E quando falamos de estatísticas, é no rompimento que há a maior possibilidade de feminicídio”, explica Tatiana. “Existem milhares de impeditivos para o rompimento dessa relação, entre eles: dificuldade em compreender aquela dinâmica como uma forma de violência; falta de suporte da rede de apoio; dependência financeira; medo de ser assassinada; desconfiança no sistema de proteção; falta de manejo adequado das instituições que fazem essa denúncia, entre muitos outros motivos”, elenca a psicóloga. 

Traumas

Toda forma de violência (sexual, patrimonial, física, moral ou psicológica) pode trazer  consequências físicas, psicológicas e sociais para as mulheres, pontua a psicóloga clínica Tatiana Wandekoken. “É comum que elas apresentem sintomas de Estresse Pós Traumático (TEPT); depressão; ansiedade; fobia social; transtorno de pânico; problemas gastrointestinais; abuso de substâncias; transtornos alimentares; comportamentos autolesivos e até tentativa de suicídio”, elenca a profissional. 

Lei Maria da Penha

A advogada Thais Câmara ressalta que a violência patrimonial está especificada no art.7, parágrafo IV, da Lei Maria da Penha. A punição ao agressor está prevista no art.24 da mesma lei e inclui, entre outras medidas podem ser adotadas pela Justiça:  “restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida”.

Como denunciar   

Se você é vítima de violência doméstica ou conhece uma mulher que vivencia algum tipo de agressão, em Belo Horizonte pode denunciar o caso na Divisão Especializada em Atendimento à Mulher, ao Idoso e à Pessoa com Deficiência e Vítimas de Intolerância (Demid) - av. Barbacena, 288, Barro Preto. Em 2022, o governo de Minas inaugurou a Casa da Mulher Mineira (av. Augusto de Lima, 1.845, Barro Preto), que tem o objetivo de atender ocorrências de demanda espontânea das mulheres vítimas de violência doméstica, familiar e sexual. Você também pode ligar para a Central de Atendimento à Mulher, ligando para o número 180, que, além de reunir denúncias e encaminhá-las para os órgãos competentes, também  orienta as mulheres em situação de violência.