O preconceito flerta com a total falta de informação em um grau constrangedor. No mesmo mês em que os “Saberes do Rosário – Reinados, Congados e Congadas” se tornaram um patrimônio cultural do Brasil, como uma forma de valorizar a cultura afro-brasileira, um vídeo com visões opostas a isso viraliza. Ignorando totalmente o fato de que a igreja é uma casa aberta a todos, uma mulher se incomoda com músicas que exaltam a ancestralidade negra e grava um vídeo incitando segregação. Entre várias visões “questionáveis”, ela diz: “Se a pessoa acredita em religiões de matriz africana, que vá para os terreiros, menos para a igreja católica”.
O vídeo foi uma espécie de protesto devido ao cantor, compositor e multi-instrumentista Sérgio Pererê ter se apresentado na igreja de Nossa Senhora das Dores, em Ouro Preto. Ela considerou uma “profanação da Igreja Católica” o artista, que é negro e conhecido por valorizar a cultura tradicional do reinado em Minas Gerais, ter tido voz em um espaço construído com uso da força negra. Não podemos nos esquecer da ativa participação do povo preto na construção daquele patrimônio que ela tenta “proteger” de quem segue a cultura afro.
Na crítica, a mulher chama de “barbaridade” o nome do álbum “Samba de Preto Velho”, do cantor. Eu tenho dúvidas se, antes de adjetivar o trabalho de um artista renomado, ela ao menos ouviu alguma música presente neste álbum. Posso citar como exemplo a canção “Glória ao Pai”, que tem o seguinte refrão: “E é por isso que eu, sendo filho do samba, digo glória ao pai/ E rezo para Nossa Senhora da Glória/ Glória ao pai”. Como católica fervorosa a ponto de se colocar quase como uma “porteira dos céus” ao definir quem pode entrar na igreja, óbvio que a moça do vídeo deve saber que Nossa Senhora da Glória é uma santa que remete à história de morte de Maria, seguida pelo que a fé católica chama de “assunção e glorificação”. Aí eu preciso perguntar: preto agora não pode cantar nem o que o catolicismo defende?
Outra música do mesmo álbum é “Estrela Guia”, que diz: “Essa luz não vem de mim/ Vem da estrela que me guia/ Essa voz não vem de mim/ Vem do povo de Aruanda/ Eu quebro quebranto e tristeza/ Com a força do meu ancestral/ Trago no riso a beleza/ E no canto a magia real”. E aí eu pergunto: o que tem de ofensivo ou profano nessa letra?
Mas esta coluna não trata apenas desse caso, mas de uma segregação histórica. Essa situação ilustra a dificuldade de certos grupos serem aceitos em templos religiosos. O que é dito no vídeo citado é o pensamento de muitas pessoas que cresceram em uma sociedade que associa todo tipo de ato religioso de origem afro ao mal. Um imaginário construído lá na época da escravização de povos negros, com a catequização forçada promovida pelos jesuítas. Ideias enviesadas e que, em um país onde educação e cultura não são universalizadas, perduram. A falta de conhecimento é a base de todo e qualquer preconceito.
Com a aprovação do título de patrimônio dos “Saberes do Rosário”, andamos um passo rumo ao letramento da população sobre o tema. No mesmo contexto, até agosto de 2023, ainda prevalecia oficialmente na Arquidiocese de BH um aviso pastoral, do início do século passado, que proibia os festejos do reinado nas igrejas. O documento era usado como justificativa para que os grupos fossem impedidos de louvar a Nossa Senhora do Rosário.
A regra só foi revogada após a Rainha do Congo do Reinado Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário e Rainha do Congo de Minas Gerais, Isabel Gasparino, escrever uma carta para o papa Francisco, em 2022, relatando a dificuldade. Na sequência, dom Walmor Oliveira de Azevedo assinou a revogação. É a própria Igreja dizendo abertamente que o Pererê e qualquer outra pessoa que se conecte com a cultura afro são bem-vindos, SIM. Agora, só faltam os fiéis se informarem a respeito e passarem a se preocupar com uma ordem explícita da religião: “Amar o próximo como a ti mesmo”. Isso, independentemente de cor, raça e crença, porque não consta nenhuma condicionante nessa ordem bíblica.