Alan Bousso é advogado, sócio do Cyrillo & Bousso Advogados e mestre em direito civil pela PUC-SP
A atuação do Poder Judiciário é essencial para a preservação do Estado democrático de direito – para garantir direitos fundamentais, resolver conflitos e assegurar o cumprimento das leis. Contudo, tem-se observado nos últimos anos um crescente fenômeno de ativismo judicial, especialmente protagonizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Com frequência cada vez maior, o Judiciário tem extrapolado sua função típica de interpretar e aplicar a lei para criar normas e decidir questões políticas, assumindo competências constitucionalmente reservadas ao Legislativo e ao Executivo. Essa implosão do conceito de Poderes independentes e harmônicos entre si, consagrado pela Constituição Federal, tem deixado o Brasil em evidente desequilíbrio institucional, em meio à crise política e à insegurança jurídica.
Ciente desse quadro, a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção São Paulo (OAB-SP) acaba de instalar uma comissão especial para promover o debate e propor uma reforma do Judiciário e a contenção das decisões do STF que ultrapassam seus limites constitucionais. A iniciativa reflete a percepção crescente da sociedade e dos operadores do direito sobre a urgência de reavaliar e limitar a expansão do papel do Judiciário no Brasil.
No STF, o ativismo judicial tem se manifestado em decisões que, embora legítimas dentro do processo judicial, invadem a esfera de competência dos outros Poderes. Um exemplo emblemático ocorreu em 2023, quando o STF determinou a suspensão de políticas públicas estaduais e municipais relacionadas à área da saúde, como a vacinação obrigatória contra a Covid-19, mesmo quando essas medidas já tinham sido objeto de debates legislativos e regulamentações específicas. Ao assumir o papel de controlador direto dessas políticas, a Corte exorbitou de sua função constitucional de controle de constitucionalidade para exercer uma espécie de comando político.
Também notadamente ativista foi a decisão do STF sobre a aplicação da Lei de Segurança Nacional para punir atos que, na visão do tribunal, atentam contra a democracia, o que resultou em restrições ao exercício da liberdade de expressão. Além disso, o Supremo tem sido protagonista em temas econômicos, como a determinação de reajustes salariais para servidores públicos e o julgamento sobre limites orçamentários, interferindo diretamente na gestão financeira dos entes federativos.
A ingerência abusiva do Judiciário vai na mão contrária da moderação que deveria pautar a Corte na observância estrita dos limites constitucionais e no respeito às decisões políticas tomadas pelos representantes eleitos pela população. Tal cenário abre espaço para contestação do Judiciário e para o aumento da polarização política, com impactos negativos na estabilidade institucional.
Ao alterar regras bem-delineadas e ao comprometer a previsibilidade do ordenamento essencial para o desenvolvimento econômico e social, o ativismo judicial eleva o grau de insegurança jurídica. A Constituição Federal estabelece claramente a separação e a harmonia entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Cada um tem funções específicas e competências delimitadas para garantir o equilíbrio institucional. O STF tem o papel fundamental de guardião da Constituição e de controle de constitucionalidade das leis, mas isso não lhe confere carta branca para legislar ou administrar.
A própria jurisprudência da Corte já reconhece que “o Poder Judiciário não pode substituir o Poder Legislativo nem o Executivo” (RE 636.331). Na prática, entretanto, essa distinção tem sido muitas vezes negligenciada. O diálogo entre os Poderes e a adoção de práticas que respeitem a legitimidade democrática são essenciais para fortalecer o Estado de direito.
Diante do quadro alarmante, a criação da comissão especial pela OAB-SP é uma reação urgente e necessária. Rever a atuação do Judiciário não significa enfraquecê-lo, mas sim reforçar seu papel dentro dos limites constitucionais. É urgente que se promova uma reforma advinda de debates técnicos e participação social. O Brasil precisa que o Judiciário exerça sua missão com equilíbrio, respeito à Constituição e em harmonia com os demais Poderes.