Vera Simone Schaefer Kalsing é professora associada do Departamento de Ciências Humanas da UFLA

Em um sábado agradável de inverno em que estive em Boa Esperança, cidade mais ou menos pacata do Sul de Minas Gerais, um evento me chamou a atenção: uma exposição de carros antigos (1). Primeiramente, lancei um olhar desde a perspectiva de classe: quem são as pessoas que possuem carros antigos para expor? Em geral, pessoas com um bom poder aquisitivo, uma renda razoável para poder adquirir um veículo antigo haja vista que não são baratos. Ao identificar a classe, a cor vem por si (pessoas brancas). Observei também o sexo e a idade.

Comumente, as pessoas que vão expor, os donos dos carros, são homens brancos, na faixa etária em torno de 50 anos, porque essa prática consiste em um hobby para quem já está com a vida mais ou menos resolvida, o que só conseguimos quando já estamos mais velhos. Consiste em um passatempo suntuoso, porque é uma ostentação. O carro em si é um objeto de luxo. E esse hobby é costumeiramente muito apreciado por homens. Temos então uma questão de gênero também, logo, de classe, de raça e de gênero.

Eu me atentei aos homens que chegavam com os seus “carangos” e às mulheres. Quando o casal tem filhos, estes estavam sob cuidado das mulheres: mães, tias, avós, enquanto os homens estavam “cuidando” (2) dos carros. Afinal, isso é “coisa” de homem.

Distrituição de papéis

Ainda no tocante à questão racial, outro fato que me chama a atenção é que a organização e a realização de um evento como esse requer a prestação de vários serviços: montadores, entregadores de mercadorias, manobristas, flanelinhas, lixeiros... Isto posto, não pude me furtar de uma análise racial porque salta aos olhos a cor de quem realiza esses trabalhos, em sua imensa maioria, pessoas negras.

É então que observo as belas casas na beira do lago, eu, mulher branca, que posso desfrutar de uma caminhada, e constato que as pessoas que batem à porta ou no portão destes imóveis, as domésticas, são sempre mulheres e, praticamente, na imensa maioria das vezes, mulheres negras.

Naturalização

Para grande parte das pessoas, essas questões tampouco despertam curiosidade ou interesse, dado que a naturalização em torno desses fatos é presumível. Assim, é bem provável que seu pensamento seja de que ser pobre ou ser rico faz parte de uma fatalidade ou predestinação, seria algo natural, que vem de Deus, algo que foi merecido, destino. 

Por conseguinte, nós podemos concluir, por meio desse pensamento, que as pessoas ricas, quase sempre brancas, praticamente todas, se chegaram onde chegaram foi por esforço próprio; já as pessoas negras por sua vez por que se encontram quase sempre em trabalhos precarizados, trabalhos braçais? Talvez porque não se esforçaram. Imagino que seja a sua resposta!


Notas:

(1) Importante registrar que, para se chegar em Boa Esperança, é preciso trafegar pela rodovia BR-265 e, no trecho entre os municípios de Nepomuceno e Boa Esperança, foram instaladas duas praças de pedágio, com cobrança no valor de R$ 15 em cada um.
(2) Chamo a atenção para o verbo “cuidar” considerando que, na sociologia do trabalho, as teóricas que estudam o trabalho do cuidado, compreendem este como historicamente associado e reservado às mulheres. Interessante analogia que podemos fazer entre a mulher que cuida das pessoas e o homem que cuida do seu carro.