Só em Minas a pior ameaça que alguém pode receber de um parente é “eu vou lhe deserdar”.
Não é o “nunca mais falarei com você” ou “nunca mais olharei para sua cara” ou “não me procure mais” ou algum palavrão.
Em nenhum lugar no país o ultimato tem igual gravidade sentimental e peso profético.
Perder a herança implica mais do que não ser lembrado no testamento, expressa um componente emocional de exílio e isolamento. É ser escanteado das rezas. É ser posto no inferno do anonimato. É ser desgarrado do sobrenome. É ser desalojado do galho na árvore genealógica.
Não se deve entender a ofensa de modo literal, pela participação real no espólio, é mais uma questão de honra do que uma preocupação financeira, refere-se à ausência de méritos para constar na memória do falecido.
Deserdar alguém é um julgamento moral, implica em atestado irreversível de frustração, de desilusão e de deslealdade.
Quem observa de longe talvez não entenda o contexto cultural.
Os mineiros se importam com a herança e comentam naturalmente sobre ela pensando em como são vistos pelos mais velhos. É uma régua da existência, uma medida de cuidado, uma forma de avaliação, para acompanhar se estão agradando ou não, se estão correspondendo às expectativas ou não, se estão dando orgulho ou não.
Estar na herança significa que você está sendo um bom filho, um bom sobrinho, um bom neto, um bom primo. Não terá direito aos bens se não foi bom o suficiente.
Tanto que é um assunto corriqueiro, não vem à tona unicamente no leito de morte, nas últimas horas do hospital.
Em qualquer roda de conversa, haverá a brincadeira sobre o que o outro tem e o que é capaz de legar. Confessar com o que se pretende ficar costuma repercutir positivamente como uma demonstração de apreço. É um faz-de-conta coletivo do inventário, já praticado por crianças e adolescentes com os seus avós.
“Gosto de seu relógio de parede.”
“Lembre de mim ao se desfazer da mesa da sala.”
“O jogo de pratos e talheres combina comigo, não vá passar adiante.”
Nada tem a ver com uma mentalidade fúnebre, de agourar a presença, ou ainda de cobiça, para aspirar as posses dos mais próximos que sequer morreram.
Família é o que o mineiro mais valoriza, mais tem em conta. Acabar excluído dos planos dos pais ou dos tios representa o maior castigo pessoal, sinônimo de humilhação e vergonha.
A ofensa não atinge os desejos materiais, desagrada pelo seu aspecto de maldição afetiva.
Não estou exagerando. Traz alto grau de injúria. É o mesmo que dizer que o deserdado não será mais bem-vindo a festas e comemorações, não será benquisto em visitas, casamentos e batizados. Foi expulso da própria família: quase como um aborto da dignidade.
Deserdar é transformar o dependente em proscrito espiritual. O possível herdeiro é que morre antecipadamente, a ponto de não contar com o privilégio da partilha com os seus iguais.
Como a palavra é levada a sério, tem-se a língua arrancada simbolicamente, sem a possibilidade de se explicar e de opinar.
As portas se fecham. Longe de corresponder a uma chantagem para ser cumprida no futuro, é um boicote feito em vida, com restrições sérias de convívio.
Quer assustar um mineiro? Diga que não terá parte na herança. Mexerá com os seus brios, arrancará as suas lágrimas e ele tentará reconquistar a confiança custe o que custar.