Você briga com quem ama, ou para estar com quem ama?
Eu me demorei nessa sutil pergunta que separa o orgulho da saudade.
Quando viajo com minha esposa, eu faço questão de sentar perto dela. Não vejo sentido um trajeto sem repartir os fones, sem dar as mãos, sem oferecer o ombro para o cochilo. Somos sempre a poltrona do meio e do corredor. B de Beatriz, C de Carpinejar. Ainda rimos das nossas iniciais bordadas na fantasia.
Nosso destino começa no avião, bem antes de chegar para o descanso das férias. Ela vai me pedir para buscar algo na sua bolsa no bagageiro, eu vou me surpreender com o saquinho de castanhas. Somos cúmplices do deslocamento, melhores amigos diante de qualquer turbulência.
Já tive que comprar assentos com antecedência, para não correr riscos de voo lotado. Ela já conversou com passageiros para trocar de lugar e assegurar a nossa dupla.
Somos inseparáveis. Parceiros das lancherias e restaurantes das conexões, com as malas certinhas para não pagar excesso de bagagem, um segurando os pertences do outro na saída ao banheiro. Nos atrasos dos embarques, nunca permitimos o tédio roubar a nossa alegria - porque estamos juntos, é o que importa: indo ou voltando.
O que me causou uma imensa melancolia foi quando flagrei, num percurso sozinho de Confins para Congonhas, num bate-volta a trabalho, um casal apartado. Eu vi que a mulher gostaria de sentar no meu lugar, para estar lado a lado do marido. Ofereci o espaço para ele, ainda que isso significasse ficar encalacrado no meio de duas pessoas.
Carregava em mente a minha história de amor com Beatriz. Eu pensei: e se fossemos nós?
A gentileza era obrigatória depois de ser tocado pela empatia. Não há como voltar atrás na emoção. Eu me coloquei no desconforto daquele par. Já fui um deles várias vezes.
Ao me levantar, de modo espontâneo, recolhendo a minha mochila, o marido me censurou:
- Não precisa, é até melhor ficarmos separados.
- Como assim? De jeito nenhum!, respondi.
- Nos aguentamos todos os dias em casa.
O rosto da sua mulher murchou no contexto oposto da cena. Seus cílios encolheram de repente. Ela baixou os olhos, não redarguiu, isolou a grosseria.
Houve um silêncio humilhado no ar. Não sabia onde me esconder com tamanha crueldade. Ainda que soasse como implicância, não era divertido. Nenhuma indiferença nunca será divertida. Ainda que pretendesse alcançar a cumplicidade fácil com os machos a bordo, perdeu a noção de intimidade.
Ele se aquietou no seu canto com um sorriso debochado e impune, nem percebendo o quanto diminuiu a sua companheira em público. O quanto desceu a escada do respeito. O quanto profanou a lealdade. O quanto não conseguiu ser elegante com quem partilha a sua vida.
Sua aliança no dedo tornou-se irrelevante. Um aro de latinha de cerveja. Ele não estava casado pelas palavras. E somente as palavras são de ouro.