FABRÍCIO CARPINEJAR

Mineiro é um respeitável túmulo

Fiquei com aquela dor de barriga em trânsito. Não há pior momento para a dignidade de um homem


Publicado em 08 de março de 2020 | 03:00
 
 
 
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Fiquei com aquela dor de barriga em trânsito. Não há pior momento para a dignidade de um homem. Encontrei refúgio no clube. Quando estava no banheiro, sentado na privada, já estabanado pela urgência, perdi o controle do celular e ele deslizou para outra baia, pela comunicação de um vão. Minha decência foi embora de vez, o toalete ao lado também estava ocupado. 

Como pedir o aparelho de volta ao meu vizinho de indigestão? Não poderia colocar a minha mão por debaixo e invadir o seu território privado. Ele deduziria que eu era um tarado. Sei lá o que pensaria, que o estaria fotografando, filmando, promovendo uma pegadinha? Suei frio. Tive a ideia de bater na parede com uma pergunta muito estranha: 

– Desculpe incomodar, você poderia devolver o meu celular? Caiu aí sem querer.

Não obtive resposta. Só havia um silêncio daquele lado. Um vácuo assustador. 

Eu esperei um pouco mais. Não faria sentido bater na porta. Seria agressivo de minha parte, meio terrorista. 

Rezava que ninguém me ligasse nesta hora, que não viesse a musiquinha intermitente, para romper a bolha da timidez. Torcia para que a minha mãe não me procurasse. Porque ela, quando tenta falar comigo, insiste. Telefona sem parar até que eu atenda. Não suporta que a deixe esperando.

Um telefone mudo já produzia estrago mental, imagina ele vibrando, em ataque epilético, com várias chamadas não atendidas. 

Quando sofria por tantas hipóteses terríveis, escutei a descarga dele, os seus passos, a torneira abrindo, ele lavando as mãos, puxando o papel-toalha e saindo do ambiente. Meus ouvidos foram os meus olhos arregalados. Os minutos demoraram séculos em minha adivinhação sonora. 

Assim que ele foi embora, abri a trava e abandonei o meu cativeiro. Logo encontrei o meu celular no piso – permanecia ali parado, intacto, no mesmo ponto de queda.

Cheguei à conclusão de que a discrição é um comportamento tipicamente mineiro. O melhor socorro correspondia a não existir. 
O senhor ou o funcionário que estava no local não pretendeu me constranger mais e me colocar em uma situação de risco, vexaminosa. Entendeu que eu estava sofrendo e guardou segredo. 

Ele me salvou de um mico maior sendo invisível. 

Era como se coisa alguma tivesse acontecido. Fez de conta que não houve o incidente. Não vi a sua cara, ele não viu a minha cara, não trocamos nenhum cumprimento, não me identificará nos corredores do Minas Tênis Clube, o enrosco morreu na paz daquela manhã, num ambiente desprovido de câmeras. 

Ele me deu um exemplo de integridade. O que poderia me dizer? “Não se abale, essa confusão é natural, ocorre com todo mundo!”, por exemplo? Não ocorre. Não se vê com frequência o celular correr no chão de uma cabine para a do lado durante o número 2 num banheiro. Tudo soaria falso. 

Mineiro é um túmulo para os embaraços públicos. Não cometerá nenhuma piada que aumente o mal-estar. Fechará as pálpebras magicamente para não violar ou registrar a intimidade de alguém. 

Prefere desaparecer diante de um erro alheio a se indispor com as palavras. 

Existe um respeito de raiz, uma obediência cega ao mandamento de que cada um cuida da sua vida, e ninguém tem nada com isso.

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