Conversava com um amigo mineiro que partilha comigo igual idade: é de 1972. Somos ratos no calendário chinês.
Apesar de crescermos em paragens tão distantes, eu no Rio Grande do Sul, ele em Minas Gerais, éramos filhos do mesmo pai: o tempo. Somando as nossas recordações, nem precisávamos de teste de DNA.
Assim como eu, ele não frequentou creches. Não teve coleguinha de avental e berço.
Conheceu a escola direto. Conheceu a escola na primeira série. Seu contato com outras crianças numa sala aconteceu apenas aos 6 anos.
Não alcanço o impacto dessa experiência, qual estrago em nossa socialização. Mas certamente somos mais apegados à família, mais do que o normal.
Eu fui criado pelos meus irmãos. Quem trocou as minhas fraldas foram os meus manos mais velhos, Carla e Rodrigo. Da mesma forma que eu trocava a do Miguel, o caçula.
Engatinhamos juntos, caminhamos juntos com o apoio dos corredores, esquentamos as mamadeiras no fogão dentro de uma caneca com água.
A mãe saía de casa para trabalhar durante o dia, e ficávamos sozinhos. E não havia nenhum pânico nisso. Não dependíamos de nenhum maior de idade para nos proteger. Desde pequenos, cumpríamos uma missão doméstica e nos revezávamos no controle de onde cada um se encontrava.
Antes de se despedir, mamãe não cansava de repetir: “não abra a porta para estranhos”. Uma máxima dita toda manhã de cuja ênfase séria, sem brincadeiras, sem piadas, ainda me recordo.
Fechávamos a tranca de baixo e superávamos a saudade da rua no pátio.
Realmente não abríamos a porta. Se tocasse a campainha ou escutássemos palmas na frente do portão, espiávamos pela janela quem era e gritávamos para saber o que queria.
Não importava a resposta, dizíamos para voltar mais tarde.
A casa não apresentava bagunça relevante. Arrumávamos a cama do jeito possível para a extensão encurtada dos nossos braços, esticando o cobertor e embolando o lençol.
Se surgia algum acidente ou queda de um de nossos soldados mirins, dávamos conta com mercúrio cromo ou gelo. Soprávamos as feridas e seguíamos adiante. Não armávamos escândalo para pronto-socorro, só em último caso – um caso gravíssimo.
Enganávamos a febre, fazíamos simpatias para vencer soluços, inventávamos chás para dor de barriga.
Nem telefonávamos para relatar notícias para a mãe. Vivíamos em completa ausência de informações até a sua chegada de noite. Não passava pela nossa cabeça incomodar com os nossos provisórios problemas alguém que nos sustentava.
Numa compra urgente no armazém da esquina, em completa e temerária exceção, um de nós permanecia de sentinela na calçada, atento à movimentação dos carros, com os olhos arregalados, um binóculo natural do medo.
Demorando um pouco, íamos atrás com reforços.
Nunca sofremos com qualquer noção de abandono.
Preparávamos a comida, guardávamos o que sobrava para janta, lavávamos a louça – eu usava até um banquinho para alcançar a pia –, cobrávamos o banho de todos, recolhíamos as roupas do varal. No anoitecer, esperávamos arrumados no sofá: os quatro tentando entender o mundo adulto da novela.
O que me assusta hoje – e comentava com o meu gêmeo mineiro de geração – é que existem crianças que não sabem nem acender um fósforo. Nem riscar um fósforo. Ao ver o fogo espantosamente surgindo de suas mãos, são capazes de jogar o palito para longe com o medo do futuro.