BRASÍLIA - O Ministério Público Federal (MPF) pede a condenação de 37 ex-agentes da ditadura pelo assassinato de Carlos Marighella. Ele foi morto na cidade de São Paulo, em uma operação desencadeada pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), na noite de 4 de novembro de 1969. O militante de esquerda, que estava desarmado, foi surpreendido em uma emboscada. A investigação mostrou que ele não teve chance de defesa.

Na segunda-feira (9), o MPF ajuizou uma nova ação civil pública que pede, entre outras condenações, que os envolvidos no episódio percam aposentadorias, restituam gastos do Estado brasileiro com indenizações concedidas a familiares da vítima e paguem compensações financeiras por danos morais coletivos que a repressão política causou à sociedade. No caso de réus já falecidos, os herdeiros deverão arcar com as reparações. 

Vários dos ex-agentes já figuram em duas ações civis públicas anteriores, que o MPF ajuizou em março e agosto, relacionadas a casos de prisão ilegal, tortura, morte e desaparecimento forçado de outros 34 militantes políticos perseguidos na ditadura. Parte dos envolvidos no assassinato de Marighella também foi alvo de uma denúncia protocolada em maio, com pedidos de condenação penal por homicídio qualificado e falsidade ideológica.

Além da responsabilização pessoal dos ex-agentes e das sanções financeiras, a nova ação busca o cumprimento de diversas medidas de preservação do passado e esclarecimento dos fatos ocorridos na ditadura. Para isso, o MPF quer que o Estado de São Paulo e a União, também réus, sejam obrigados a realizar um ato público de desagravo à memória de Marighella e a incluir informações sobre o caso em espaços de memória dedicados ao período.

Um dos réus é o ex-delegado Sérgio Paranhos Fleury, que comandou a operação. Além dele, são citados na ação do MPF, além de ex-agentes do Dops, o ex-integrante do Instituto Médico Legal (IML) Abeylard de Queiroz Orsini. Ele foi um dos autores do laudo necroscópico que, segundo o MPF, omitiu as circunstâncias da morte de Marighella para endossar a versão oficial de que o militante havia reagido à prisão. 

“O documento deixou de mencionar sinais da execução sumária, como evidências da curta distância dos tiros e lesões que indicavam a tentativa da vítima de se proteger dos disparos. A prática de forjar laudos era comum no IML de São Paulo, unidade que colaborou ativamente com os órgãos de repressão durante toda a ditadura para encobrir crimes e eximir os agentes de responsabilidade”, diz o MPF.

Inimigo público número 1 do regime militar

Nascido em  Salvador (BA), em 1911, Carlos Marighella dirigia a Aliança Libertadora Nacional (ALN), organização de resistência armada à ditadura, e era considerado o “inimigo público número 1” do regime militar, pois foi um dos líderes da luta armada contra a ditadura. 

Marighella ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB) quando estudava engenharia, em Salvador – abandonou o curso para se dedicar à militância política. Mudou-se para o Rio de Janeiro, então capital do país, onde foi preso duas vezes durante o governo de Getúlio Vargas, sendo torturado. Acabou anistiado em 1945.

Eleito deputado federal pela Bahia, teve o mandato cassado em 1947, quando o PCB foi posto na ilegalidade – Marighella entrou na clandestinidade. Convidado pelo Comitê Central do Partido Comunista da China, passou os anos de 1953 e 1954 naquele país, a fim de conhecer de perto a então recente revolução comunista chinesa.

Em março de 1964, ajudou a redigir o discurso proferido pelo marinheiro José Anselmo dos Santos, o “cabo Anselmo”, durante a Revolta dos Marinheiros. Em maio, após o golpe militar, foi baleado e preso por agentes do Dops dentro de um cinema, no Rio. Libertado em 1965 por decisão judicial, no ano seguinte optou pela luta armada contra a ditadura.

No mesmo ano, rompeu com Luís Carlos Prestes e fundou a ALN, que, com tática de guerrilha urbana, queria a queda do regime militar. Em junho de 1969, quando estava casado com a comunista Clara Charf – era seu segundo casamento –, escreveu o “Minimanual do Guerrilheiro Urbano”. Em 15 de agosto, liderou o grupo que invadiu a Rádio Nacional, em Piraporinha (SP), e divulgou o manifesto contra a ditadura.

Ele foi morto por volta das 20h30 de 4 de novembro de 1969, por agentes da Operação Bandeirante, comandados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops. O corpo de Marighella foi encontrado em um Fusca, na alameda Casa Branca, nos Jardins, em São Paulo. Além do guerrilheiro, morreram a policial Estela Borges Morato, que estava à paisana e de tocaia, e um protético que passava pelo local. 

Comunicado do Dops informa que o cerco tornou-se possível a partir da prisão, no início de novembro de 1969, de Yves do Amaral Lesbaupin e Fernando Brito, freis dominicanos do convento das Perdizes, que, após interrogatório, revelaram planos da ALN e o local onde estaria Marighella.

Segundo a Operação Bandeirante, aparato de repressão fundado em 1º de julho de 1969, ao ir ao encontro dos freis, Marighella recebeu ordem de prisão, mas correu para o carro, “momento em que fez menção de sacar, de dentro de uma pasta, dois revólveres que estavam nela”. O guerrilheiro foi alvo de uma rajada de metralhadora e morreu, “caindo morto dentro do carro”.

Mas o dossiê da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, do Ministério da Justiça, contestou o Dops. Segundo o documento, divulgado em 1996 e baseado no laudo cadavérico do líder da ALN, Marighella foi morto com tiro no peito, à queima-roupa, após dominado pela polícia. O corpo da vítima foi arrastado para dentro do carro e deixado em “posição impossível”.

Segundo Nelson Massini, médico legista que fez a análise do laudo cadavérico de Marighella, o guerrilheiro levou quatro tiros. “A distribuição dos tiros não corresponde a uma rajada de metralhadora [...] Não há perfuração no carro que justifique os ferimentos. O ferimento no tórax, além de ter sido à queima-roupa, foi disparado de cima para baixo”, disse Massini.

Ainda, diz o médico, pela colocação dos pés (para fora do carro), o guerrilheiro não poderia cair naquela posição depois de levar um tiro no peito. 

Crime contra a humanidade 

Os envolvidos no assassinato de Marighella não podem ser beneficiados por prescrição – quando, após um prazo definido, não é mais possível exigir um direito na Justiça – nem anistia, pois o episódio é considerado crime contra a humanidade por ter ocorrido em um contexto de ataque sistemático e generalizado contra a população civil. 

Além disso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já definiu que demandas indenizatórias relacionadas a violações da ditadura são imunes a prescrições. A Constituição também afasta prazos prescricionais para ações de ressarcimento ao patrimônio público, como é o caso de parte dos pedidos do MPF.

A imprescritibilidade dos atos de violação a direitos humanos foi fixada ainda em duas condenações ao Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). As determinações também proíbem o Judiciário brasileiro de barrar processos com base na Lei da Anistia (Lei nº 6.683/79), que, segundo a Corte, não possui efeitos jurídicos por constituir um instrumento de autoperdão a membros do aparato repressivo. O país submeteu-se voluntariamente à jurisdição da CIDH e, por isso, é obrigado a cumprir as sentenças.

A procuradora da República Ana Letícia Absy, autora da ação do MPF, reitera que o contexto de aprovação da Lei da Anistia anula completamente seu valor, apesar de a norma ainda ser evocada para impedir investigações e condenações. 

“A lei foi criada apenas para privilegiar e beneficiar os que se encontravam no poder, buscando exatamente atingir o escopo ainda persistente: não haver a punição dos crimes ou ressarcimento dos atos praticados pelos agentes estatais, quando estes saíssem do poder. E até a presente data, infelizmente, está plenamente atingindo seus objetivos”, destacou Absy.

Anistia post mortem

Em dezembro de 2012, o Ministério da Justiça oficializou a anistia post mortem de Carlos Marighella, guerrilheiro morto pelo regime militar em 1969. Marighella já havia recebido o reconhecimento em dezembro passado, na 6ª Sessão de Julgamento da Caravana da Anistia, realizada em Salvador.

Antes da anistia política, o Estado já havia reconhecido, em 1996, que fora responsável pela sua morte. A família de Marighella não pediu reparação econômica, apenas reconhecimento da perseguição ao militante.