Manuela D’Ávila lança hoje - Dia Internacional da Mulher - seu livro "Sempre foi sobre nós - Relatos da violência política de gênero no Brasil" (ed. Instituto E Se Fosse Você?). A obra foi pensada a partir de sua experiência nas eleições de 2020, quando concorreu à prefeitura de Porto Alegre (RS).
Ela conta que sofreu inúmeros ataques durante a campanha, superando o que já tinha vivido desde 2004, quando se elegeu pela primeira vez para a Câmara Municipal da cidade. Na sequência, Manuela foi eleita deputada federal 2006 e 2010, deputada estadual em 2015, e também concorreu outras duas vezes à prefeitura e à vice-presidência da República, ao lado de Fernando Haddad (PT), em 2018.
“Eu disputei a eleição de 2018 que foi muito violenta, em que fui o centro da distribuição de notícias falsas, principal vítima disso no processo eleitoral, e eu não imaginava que nada seria pior do que aquilo. Ocorre que a eleição de 2020 foi muito pior, o que me fez entender que, na verdade, a autorização do uso de violência política contra a mulher, uma vez que ela não é punida, ela só é crescente”, conta.
Inicialmente, o livro seria baseado em seu relato, mas depois acabou se tornando uma coletânea de experiências sobre a violência sofrida por várias mulheres na política brasileira, entre elas cinco mineiras: a vereadora de Belo Horizonte Duda Salabert (PSOL), a ex-deputada Jô Moraes (PCdoB), a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), a deputada federal Áurea Carolina (PSOL) e a cientista política e pesquisadora da UFMG, Marlise Matos. “Minas é o Estado com mais autoras no livro”, diz Manuela D’Ávila.
O livro será lançado hoje, mas já estava disponível em pré-venda exclusiva no site do Instituto E Se Fosse Você? desde 17 de fevereiro.
Confira a entrevista com Manuela D’Ávila:
Qual a sua experiência com a violência contra a mulher na política? Foi por causa disso que resolveu lançar o livro?
Uma coisa é consequência da outra. Na verdade, eu acho que durante toda a minha vida política eu sofri diversas formas de violência política, que nós chamamos hoje de violência política de gênero. Mas, há pouco tempo, do ponto de vista histórico, eu tomei conhecimento que esse era o nome daquilo que eu sofria. Conversando com a Jô Moraes, ela disse que escrever o artigo do livro para ela foi muito duro porque ela se deu conta de que, durante toda a vida dela, mesmo lá na ditadura, existia uma diferença da violência que ela sofria e que era constituída por essa característica da violência política de gênero. Então, toda a minha trajetória é marcada por isso. Eu me elegi pela primeira vez em 2004, com 22 anos de idade. Então, lá atrás, eu era a jovenzinha bonitinha e isso era vinculado à incapacidade, como se fosse esse o atributo que fizesse eu receber os meus votos e estar na política. E isso foi crescendo ao longo do tempo, sobretudo depois de 2016, quando a violência e a misoginia passaram a fazer parte do centro da batalha política, com o impeachment contra a presidente Dilma (Rousseff). A partir dali, há uma escalada, uma desproporção em relação a tudo aquilo que eu mesma já havia vivido antes. Então, de 2016 para cá, 2014, na verdade, que é quando começa esse processo, foi bastante violento. Depois disso, eu disputei a eleição de 2018 que foi muito violenta, em que fui o centro da distribuição de notícias falsas, principal vítima disso no processo eleitoral, e eu não imaginava que nada seria pior do que aquilo, de que eu não seria vítima de violências mais duras do que aquelas. Ocorre que a eleição de 2020 foi muito pior, o que me fez entender que, na verdade, a autorização do uso de violência política contra a mulher, uma vez que ela não é punida, ela só é crescente. Ela sempre parte de onde parou, ela nunca começa de novo do zero. Então eu fiquei muito impressionada olhando para o que eu vivi e muito abalada pessoalmente com o que eu fui submetida na eleição de 2020. E quando a eleição acabou, eu decidi escrever um livro, mas eu imaginava que ia ser um livro só meu. Saí da eleição e pensei: vou escrever um livro sobre violência política de gênero. Ocorre que, eu me dei conta que era um erro eu pessoalizar ou escrever um livro sozinha porque isso poderia dar a entender que era algo pessoal quando, na realidade, justamente o esforço que nós temos que fazer é o esforço de despersonalizar, ou seja, de conseguir mostrar que nunca é sobre uma de nós, nunca é sobre o peso, sobre a vida conjugal, sobre os filhos, sobre a aparência ou sexualidade de uma de nós, mas sempre é o uso disso para tirar as mulheres, todas nós, dos espaços de poder. E foi então que eu convidei essas outras mulheres para escreverem junto comigo, e Minas é o Estado com mais autoras no livro. A gente tem a Jô (Moraes), a deputada Áurea (Carolina), a vereadora Duda (Salabert) e a professora Marlise entre as autores, ou seja, quase 30% do livro é mineiro. (Ela esqueceu de mencionar a ex-presidente Dilma Rousseff, que também escreve no livro e é mineira).
Você disse que a violência está crescendo, mas ela cresce à medida que se aumenta a participação feminina na política ou acredita que tem algum elemento do momento político atual do país?
E quando você reuniu essas histórias, o que você percebeu de comum e o que difere, o que muda ao longo do tempo, já que o livro reúne histórias da ex-presidente Dilma e da ex-deputada Jô Moraes, que viveram o período da ditadura, e também políticas recém ingressas na política?
São histórias muito diferentes, mas muito comuns. Quando se conversa com a professora Marlise Matos, aí da UFMG, você vê que ela relatou 11 caracterizações que acometem mulheres. Na época, ela estudava Dilma Bachelet e Cristina Kirchner e disseram para ela assim: ‘olha isso é algo de democracias pouco consolidadas, na Europa e nos Estados Unidos não é assim’. Aí, ela passou a estudar a Europa e os Estados Unidos. E o que ela viu? Exatamente a mesma coisa. Então, na verdade, são histórias muito diferentes, histórias de vida muito diferentes, mulheres com cidades e trajetórias distintas, mas a violência e as formas como essa violência chega são sempre muito próximas. O que eu notei em comum também? Todas nós, todas as autoras, tivemos muita dificuldade de sistematizar isso porque é algo muito doloroso, é algo muito doído, porque, como sempre, parte de ataques parecem pessoais e são a partir de ‘aparentes’ falhas nossas. Então, resgatar isso e sistematizar é viver de novo. Falar da violência que tu sofreu é viver de novo essa violência. Então, para todas nós, e isso eu conversei com as autoras, foi muito doído, escrever os artigos e escrever isso.
E você já pensou alguma vez em desistir?
Muitas vezes, acho que todas nós já pensamos. Mas, o fato é que nós temos razões mais fortes para seguir adiante do que essa vontade. E acho que encontrar e ter certeza das razões pelas quais nós estamos nesse ambiente tão violento, para nós também diz muito porque, talvez o que tenha mais me perturbado em 2020, foi justamente o fato de todos os homens públicos ficarem calados diante de uma violência evidentemente, e não subliminarmente, mas evidentemente misógina e machista que eu estava sofrendo, e eu pensar: se eu, que tenho visibilidade, que tenho voz, que tenho redes sociais potentes e que tenho redes que me protegem, se eu era vítima dessa violência diante do silêncio desses homens, eu fiquei me colocando no lugar das milhares e milhares de mulheres que não têm voz, no sentido de que não tem dimensão pública e que não sofrem a violência em público. Se eu sofria essa violência em público e diante do silêncio e da cumplicidade de outros homens, o que sofrem as mulheres que não estão no mesmo lugar? E isso foi o que me fez não desistir em 2020, o que me fez transformar a dor que eu estava sentindo nesse livro que nós lançamos agora essa semana.
E qual é a saída dessa questão da violência contra a mulher na política?
Muitos países têm leis que versam sobre isso. A Bolívia é o primeiro país do mundo (a aprovar a paridade de gênero no Parlamento), aprovou há nove anos, em 2012, e há uma recomendação da Organização das Nações Unidas para que nós tenhamos isso. Então, acho que existe um esforço que é Legislativo, e existe um outro esforço que é sempre aquele mais demorado, mas mais eficaz, que é a conscientização da sociedade sobre o que acontece. Alguns anos atrás, práticas racistas eram comuns e faziam parte da rotina, por exemplo, do entretenimento. Basta lembrar como funcionava a lógica e a estruturação do humor no programa ‘Os Trapalhões’. Isso foi antes da criminalização do racismo e isso persistiu enquanto não havia uma consciência da sociedade sobre essa o que o movimento negro e os homens e mulheres negras falam há muito tempo, até que houve espécie de cordão sanitário com relação a isso, ou seja, não é mais tolerável, se conscientizou a sociedade de que aquilo era racismo, claro que com amparo da lei. A lei é importante, mas o que muda a realidade é a conscientização para que a lei valha na vida. Da mesma forma, o movimento LGBT, por exemplo, conseguiu mostrar que o humor baseado na violência, na caricaturização sobre comportamentos de homossexuais, de homens ou de mulheres gays, não tinha graça e, pouco a pouco isso saiu da rotina daquilo que era comédia no nosso país. Basta lembrar que, há pouco tempo, os principais personagens daquele programa Zorra Total eram baseados nessas caricaturas e hoje, talvez, a maior parte da sociedade estranhasse aquilo. Então, para mim, o tema da violência contra as mulheres e da violência política contra as mulheres também passa pelas duas esferas, pela esfera do enfrentamento legal e da punição contra aqueles que praticam, e da conscientização da sociedade sobre como esse é um instrumento utilizado pelo sistema político, pelo que nós chamamos de patriarcado, para a manutenção do status quo. Não é sobre uma de nós, não é sobre os atributos, qualidades ou defeitos públicos de uma de nós, mas é sobre a utilização de instrumentos privados para nos tirar a todas nós dos espaços de poder do nosso país.
Atualizada às 9h20