Desde o começo da pandemia de coronavírus, cujos primeiros casos atingiram a China nos últimos dias de 2019, os olhos do mundo voltam-se à curva de progressão da Covid-19, que indica o número de casos confirmados de doentes ao longo do tempo. Tanto é que “achatar a curva” tornou-se o objetivo de medidas de isolamento social que já mantêm um terço da humanidade, 2,8 bilhões de pessoas, dentro de casa ao redor do mundo, segundo estimativa da agência France Presse (AFP).
A curva brasileira, após 33 dias desde o primeiro caso confirmado no país, continua subindo. A pergunta de um milhão é quando ela será freada e se o número de casos vai diminuir ou, ao menos, estacionar. Nas próximas semanas, o Brasil vai se aproximar mais da Itália (que soma 92,5 mil casos e 10 mil mortes) ou da Coreia do Sul (que conseguiu “achatar” a curva em pouco mais de um mês)?
Para pesquisadores, a resposta depende, em primeiro lugar, de dados mais precisos. O número absoluto de casos em determinado país não indica necessariamente se a epidemia está “melhor” ou “pior” em cada local – os quase 4.000 casos do Brasil hoje são, obviamente, menos do que os mais de 92 mil da Itália. Mas a epidemia no país europeu irrompeu no final de janeiro, dois meses antes do início no Brasil. No 33º dia de epidemia na Itália, eram cerca de 2.500 casos, menos do que o Brasil encara no mesmo período.
Ritmo de progressão do coronavírus desacelera, mas pesquisadores temem subnotificação
O segredo para entender a curva do coronavírus é olhar o ritmo de progressão da doença, em vez da quantidade de casos, segundo Roberto Kraenkel, professor do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e membro do Observatório Covid-19 BR, que analisa dados da doença no país diariamente.
“Nosso ritmo inicial era o de dobrar os casos a cada 2,5 dias, aproximadamente. Hoje, esse número está em cerca de quatro dias. Aparentemente, houve uma freagem, mas você tem que levar em conta que o dado é feito a partir de casos divulgados pelo Ministério da Saúde. Tendo menos testes sendo feitos, parecem menos casos”, diz. Um estudo britânico estima que nove em cada dez casos de Covid-19 no Brasil não sejam detectados.
De acordo com a análise do observatório, no Brasil, essa taxa demorou menos de uma semana para aumentar – o que significa diminuição do ritmo de contágio. Já a Itália demorou mais de 20 dias para chegar a esse ponto. Isso, contando com uma quarentena nacional. É uma disparidade que acende o alerta para Kraenkel: “Faz com que a gente não saiba se essa freada, esse ritmo mais lento, reflete a dinâmica da epidemia ou do nosso sistema de informação”.
O mesmo se aplica à transmissividade da doença, de acordo com o doutor em bioinformática Bráulio Couto, autor de estudos sobre a Covid-19 em parceria com a Prefeitura de Belo Horizonte. “Nosso número diz que a situação melhorou bem. Saímos de um cenário em que cada caso infectava dez novos e chegamos a um cenário em que infecta quatro. Quando a doença está controlada, cada caso gera menos de um novo”. Ele se mantém otimista, mas também ressalta que, sem conhecer o real número de casos no país, não é possível dizer se o ritmo da epidemia diminuiu de fato.
Atualmente, Couto trabalha em uma análise sobre os casos em Belo Horizonte e já adianta que a janela de oportunidade para alcançar a agilidade da Coreia do Sul se fechou. Em um tipo de quarentena vertical, o país testou mais de 350 mil cidadãos, em um universo de 51 milhões de pessoas, e liberou a rotina de quem não estava contaminado. No Brasil, o protocolo atual é testar somente os casos mais graves e, em breve, indica o governo, profissionais de saúde.
Nesse sábado (28), a Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo afirmou que o isolamento social no Estado – que iniciou uma quarentena oficialmente na última terça-feira (24) – está funcionando. O pesquisador Roberto Kraenkel argumenta que esses efeitos só vão ser sentidos, na verdade, em cerca de duas semanas.
Caso o isolamento comprove-se eficaz, o professor Bráulio Couto lembra: “Temo que as pessoas digam que, se está melhorando, posso afrouxar o isolamento social. Mas é o contrário. Se está melhorando, é porque está funcionando”. A Alemanha é um dos países da Europa que têm colhido os resultados mais rápidos de controle da doença, e a primeira-ministra alemã, Angela Merkel, avisou que o isolamento deve persistir ao longo de abril.
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Dados diários de coronavírus no Brasil refletem o passado, e pesquisadores reclamam de falta de informações
O pesquisador Marcelo Gomes, do Programa de Computação Científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), explica que os dados de coronavírus no Brasil vistos hoje refletem um cenário de dias passados. “Temos informação de casos cujo resultado de exame saiu até ontem. Quem foi hospitalizado ontem e é caso suspeito, fez coleta de material para o laboratório avaliar se é positivo para Covid-19, vai saber daqui a alguns dias, e o tempo de espera aumenta devido à carga dos laboratórios”. Gomes liderou um levantamento da Fiocruz que mostra uma explosão de internações por síndrome respiratória aguda grave no Brasil.
Os casos que são confirmados hoje pelo ministério podem ser de pessoas que estão internadas há dias – não se sabe quantos, o que é outra questão questionada pelo professor Roberto Kraenkel, do Observatório Covid-19. “Seria preciso ver um histórico do que houve com cada pessoa, há quantos dias estão internadas, cada etapa do exame, quanto tempo ficam no hospital… Mas a última vez em que tivemos acesso a esses números foi na semana passada”.
Sem informações completas, fica difícil comparar a realidade do Brasil com a de outros países, e mesmo o cenário de Estado para Estado. É o que avalia Fernanda Campagnucci, diretora executiva da Open Knowledge Brasil, organização que monitora a transparência de dados públicos no país. “Seria importante o Ministério da Saúde assumir a coordenação da divulgação de dados. As secretarias estaduais têm um maior ou menor nível de transparência, algumas têm sido mais detalhadas, com idades das pessoas infectadas, por exemplo”.
Ela cita a Secretaria de Saúde do Estado do Ceará como um bom exemplo, já que detalha publicamente dados como número de pessoas contaminadas que estão em casa e quantas estão na UTI. É uma informação que os boletins epidemiológicos diários de Minas Gerais não mostram.
Taxa de letalidade da Covid-19 muda a cada dia, e especialistas alertam que isolamento social ainda não pode ser abandonado
A taxa de letalidade da Covid-19 representa o número de óbitos confirmados dividido pelo total de números de casos confirmados em determinado local. Atualmente, a taxa brasileira é de 3,02%, isto é, a cada 100 pacientes, 3 morrem. Essa taxa varia todos os dias, a dependendo da quantidade de casos e de mortes.
A média global estimada inicialmente pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é de 3,4%, e há diferenças significativas entre países: a Itália já teve momentos de 10%, enquanto a Alemanha assiste a uma taxa de menos de 1%. Comparada à das gripes sazonais, que ocorrem mundialmente todos os anos, a taxa de letalidade global do coronavírus é 34 vezes maior.
O pesquisador Roberto Kraenkel lembra que essa taxa diz respeito a mais do que à periculosidade do vírus: “Ela significa atender pessoas e conseguir salvar vidas. Há lugares mais e lugares menos preparados”. Uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) divulgada nesta semana mostrou que, mesmo em cenários mais brandos, faltariam leitos de UTI no Brasil para atender os casos mais graves de coronavírus.
Em meio às incertezas, Kraenkel finaliza: “Eu entendo que existam problemas e que as estatísticas não são a primeira prioridade, que é salvar a vida das pessoas. A gente não sabe se realmente há diminuição no ritmo de casos, o que é uma notícia péssima”.
A reportagem procurou o Ministério da Saúde para saber o posicionamento da pasta sobre a precisão dos dados informados, mas não havia tido retorno até a publicação desta matéria.