Construído há quase meio século para ser um local de retiro para os fiéis e os freis franciscanos da Província dos Frades Menores Capuchinhos de Minas Gerais, o sítio ao pé da serra do Curral, em Sabará, na região metropolitana de Belo Horizonte, faz juz ao nome: “Recanto das Águas”. O líquido cristalino é, de fato, a marca do local, seja na entrada, onde uma bela fonte dá as boas vindas ao lado de uma imagem de São Francisco acompanhado de pássaros e de um cão; durante a curta trilha que atravessa a propriedade, sempre margeada pelo límpido riacho; ou na bela nascente — que borbulha do chão em frente a um imponente paredão de pedra cravejado pelas gigantescas raízes de uma árvore. Resistente, a mina d’água não perdeu seu volume nem mesmo durante a maior estiagem em 60 anos, registrada em 2024, mas, agora, se vê ameaçada não pelas condições climáticas, mas pela imprudência de uma empresa que depositou rejeitos de minério de forma ilegal logo acima da nascente que alimenta a bacia do rio das Velhas.
Após quase cinco meses de seca, bastou a primeira chuva do dia 13 de outubro para que uma grande quantidade de lama destes rejeitos corresse até a mina d’água da propriedade, preocupando não só os frades, mas, também, outros moradores da região que têm suas casas abastecidas pelo manancial. Diante da denúncia dos moradores, na última quinta-feira (17 de outubro) a reportagem de O TEMPO foi até o local e flagrou funcionários em tratores e caminhões da Fleurs Global Mineração, empresa autorizada a atuar desde agosto deste ano, despejando os rejeitos às margens da Estrada Velha, que liga Sabará e Nova Lima.
Após “esgotar” um primeiro local de depósito ilegal, na altura do município de Sabará e logo acima da nascente dos freis, a mineradora passou então a jogar os restos da mineração em outro ponto da estrada, desta vez, já em área pertencente ao município de Nova Lima, ponto onde os trabalhadores foram fotografados despejando os materiais.
Monte de rejeitos foi despejado pela empresa às margens da estrada, logo acima da nascente l Alex de Jesus / O TEMPO
“Sempre havia necessidade de um espaço em que a gente pudesse se retirar da cidade, tanto para os frades quanto para os fiéis da paróquia. É um espaço para convívio, para encontro, para retiro. Por isso que é uma área bastante preservada, pois a gente entende que tem muito a ver com a nossa espiritualidade franciscana, tem muito a ver com a maneira como São Francisco lidava com a criação. Para nós, a preservação daquela propriedade é prioridade”, explica o frei João Ferreira Júnior, de 37 anos.
O religioso conta que, há 40 anos, quando a propriedade foi construída, existia na nascente um espelho d’água. Porém, ainda segundo o frei, ao longo dos anos a atividade minerária acima da propriedade levou à alteração no cenário do local. “Cada vez que a enxurrada desce, ela vai levando esse rejeito na beira da estrada e despenca onde antes estava o espelho d'água. O que existe hoje é um amontoado de terra de minério, de pedras, que foi o que veio com com a enxurrada e ali acabou se depositando, em cima da da nascente. Mas, por uma teimosia bonita da natureza, ela continua vertendo água”, continua o frade.
Apesar dos impactos da mineração, água segue brotando abaixo do paredão de pedra l Alex de Jesus / O TEMPO
Todos os sítios da região têm direito de uso compartilhado da água dessa nascente, desde a sua cabeceira até o ponto onde ela deságua no rio das Velhas. A advogada Andréa Matos Rodrigues, de 56 anos, é proprietária há 35 anos de um sítio no local e também conta, orgulhosa, que, ao longo de todo esse tempo, nunca viu o curso d’água secar. Porém, após as chuvas registradas neste mês, vendo a quantidade de lama de minério que desceu junto da água, ela passou a temer pelo futuro do manancial que abastece sua casa.
“Eles colocaram (rejeitos) na estrada e vai tudo para baixo, cai em cima das várias nascentes que existem nesta região. Uma delas é esta do sítio dos frades Capuchinhos, em frente à minha propriedade. Brota uma água linda, e esses rejeitos caíram em cima dela. Só deu uma chuva e já teve um estrago danado, imagina agora na hora que começar a chuva direito?”, pergunta a advogada.
Procurado, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) informou que, até o momento, não recebeu nenhuma denúncia referente ao despejo irregular de rejeitos de minério pela mineradora. "Diante das imagens repassadas pelo Jornal O TEMPO, o MPMG avalia instaurar inquérito para apurar as informações", completou o órgão de Justiça.
Impactos podem chegar ao rio das Velhas
Biólogo do projeto Manuelzão, da UFMG, desde 1999, Carlos Bernardo Mascarenhas explica que, quando ocorre depósito irregular de rejeitos de minério, por se tratar de um material muito fino, caso esse material chegue até corpos d’água, toda a vida existente ali pode ser prejudicada.
“Ele (rejeito fino) atrapalha os hábitats que existem dentro do rio, a biota aquática. Dependendo do local da extração, também há arsênico e outras substâncias tóxicas que podem estar ligadas à exploração ou a área que está sendo explorada. Eventualmente, até a flora e a fauna terrestre podem ser prejudicadas, dependendo do tipo de alteração que a exploração causa. Então, é realmente por esses variados tipos de impacto que uma exploração dessa pode gerar que ela deve ser muito bem fiscalizada, monitorada, pelos órgãos responsáveis”, ponderou.
Ainda conforme o biólogo, caso esses rejeitos sejam carreados para a bacia do rio das Velhas, um outro problema existente é com relação à captação que existe no corpo d’água, que abastece 2,4 milhões de pessoas na região metropolitana de Belo Horizonte. “O rio das Velhas é estratégico para a oferta de água potável à população da região metropolitana, onde se concentra a maior parte da população de Minas Gerais. Temos que ter muito cuidado com essa exploração e os impactos que qualquer erro na exploração de minério nessa área, já que pode afetar milhões de pessoas e vários cursos da água”, completa Mascarenhas.
Fonte ao lado de imagem de São Francisco utiliza água da nascente ameaçada l Alex de Jesus / O TEMPO
A Fleurs Global Mineração foi procurada por O TEMPO desde a última sexta-feira (18), mas, até a publicação da reportagem, não tinha se posicionado sobre o flagrante da disposição de rejeitos às margens da estrada de Nova Lima.
A reportagem também demandou as prefeituras de Nova Lima e Sabará. Segundo o primeiro município, ele não recebeu nenhuma denúncia relacionada ao assunto, destacando ainda que o licenciamento, monitoramento e cumprimento das condicionantes são de “responsabilidade do Estado”. Já a Prefeitura de Sabará alegou por nota que também não recebeu nenhuma denúncia sobre o despejo dos resíduos, mas que equipes de fiscalização estão percorrendo a região para “averiguar a regularidade das ações e atividades” apontadas pela reportagem.
Histórico de irregularidades
Em entrevista, o advogado do projeto Manuelzão Lucas Prates pontuou que a Fleurs Global Mineração é uma empresa que possui um histórico marcado por irregularidades e ilegalidades. “As ações ilícitas cometidas pela empresa parecem não ser exceções, mas sim uma constante em seu modo de operação. O que surpreende é que, apesar das denúncias apresentadas aos órgãos licenciadores de Minas Gerais, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), por meio de sua Unidade Regional de Regularização Ambiental (URA) da região Central e Metropolitana, emitiu um parecer homologando o laudo técnico para deferimento da licença de operação corretiva para Fleurs Global Mineração. Posteriormente, a Câmara de Atividades Minerárias do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) concedeu tal licença, ignorando o histórico problemático da empresa”, argumenta.
A partir da autorização para atuação da empresa, o Instituto Guaicuy e o Projeto Manuelzão enviaram mais de 50 questionamentos evidenciando “falhas metodológicas nos documentos apresentados pelo empreendimento, possíveis vícios no processo e o histórico de ilegalidades da empresa”. Ainda conforme o advogado, as questões não foram anexadas ao processo e nem receberam esclarecimentos, o que está previsto nas normas internas do Copam.
“Apesar de termos formalizado essa constatação por meio de um ofício encaminhado a todos os conselheiros da Câmara de Atividades Minerárias, não obtivemos resposta. Diante dessa situação, ajuizamos uma ação judicial para denunciar as ilegalidades, que agora estão sendo discutidas no Poder Judiciário”, concluiu Prates.
Procurada, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) informou, por nota, que os órgãos ambientais deferiram a licença ambiental corretiva para uma unidade de tratamento de minério da Fleurs Global, mas que o empreendimento está “fora dos limites estabelecidos da serra do Curral”.
“Importante ressaltar que a licença corretiva não autoriza qualquer atividade de extração mineral pelo empreendimento. A autorização é válida apenas para a atividade de beneficiamento de minério de ferro, com tratamento a úmido e a seco, de materiais brutos acondicionados pela empresa — adequando o empreendimento às normas e controles ambientais previstos na legislação. Informamos ainda que não existe autorização para despejo de rejeitos às margens da Estrada Velha de Nova Lima/Sabará. O lançamento de efluente existente, autorizado no processo, refere-se à saída dos sistemas de drenagem da pilha, que são lançados em córrego que deságua nos Rios das Velhas. Esse lançamento deve ser feito com todo o controle exigido pelas normas ambientais”, concluiu a Semad.