Os 999 moradores do tradicional edifício JK, localizado no bairro Santo Agostinho, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, escolherão no próximo sábado (7 de dezembro) quem será o síndico que administrará o condomínio no próximo mandato. A eleição acontece em meio a uma série de polêmicas envolvendo a atual síndica – que está há 40 anos no poder –, Maria Lima das Graças. Nos últimos meses, O TEMPO publicou uma série de matérias com denúncias de supostas arbitrariedades cometidas pela “Dama de Ferro do JK”, como a mulher é chamada por alguns condôminos, e, também, sobre a ausência desde 2017 do documento que comprova a segurança contra incêndios no condomínio Governador Kubitschek – nome oficial do prédio desenhado na década 50 por Oscar Niemeyer.
Entretanto, até mesmo o edital de convocação da assembleia foi alvo de denúncias, feitas por mais de um morador do edifício, desta vez por trazer uma série de medidas polêmicas para serem votadas por eles. A reportagem teve acesso ao documento, assinado pela síndica Maria Lima das Graças no dia 1º de novembro e distribuído aos moradores somente uma semana antes da eleição. A ordem do dia traz, ao todo, 15 medidas a serem votadas, sendo a eleição do importante cargo a última delas, ao pé do edital. Porém, algumas das pautas a serem votadas foram consideradas abusivas pelos moradores e por um advogado especialista em direito imobiliário.
“Discussão e aprovação para que a Assembleia determine multa para a unidade cujo morador tumultue a assembleia e interrompa a discussão da pauta”, diz o item número 3 do edital. Já na pauta 9, o condomínio quer aprovar a aplicação de “medidas jurídicas cabíveis contra a unidade cujo morador e/ou proprietário difame a imagem do Conjunto e desvalorize os imóveis”.
“Primeiro surgiu um boato de que a eleição seria dia 7. Depois, os proprietários com endereço fora do condomínio receberam o edital por carta registrada e, por fim, a partir do dia 1º de dezembro, o restante dos moradores passou a receber a convocação. Não houve convocação nas áreas comuns do prédio. Mas acontece que, sabendo de última hora, muita gente já tem compromisso ou viagem e não poderá participar. Além disso, alguns pontos que serão votados são bizarros. Parece uma convocação da inquisição, prevendo punir quem difamar o condomínio, multa para quem quiser se pronunciar na assembleia segundo os moldes arbitrariamente estipulados. Não há espaço para debate”, disse um dos moradores sob anonimato, por medo de ser “punido” com as novas normas.
Outro ponto a ser votado, e que foi questionado por uma moradora antiga do local, foi a pauta de número 10 do documento. No item, está previsto que a administração do prédio possa acionar o Comando da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) “nos casos em que policiais tentam interferir no Regulamento Interno do Conjunto”.
“Existem muitos boletins de ocorrência que são feitos por moradores na unidade policial que tem aqui perto, em inúmeras situações. Por exemplo, tem porteiro que não aceita a pessoa entrar se o documento for digital, no celular, e a, o morador tem que chamar a polícia. Tem porteiro que não deixa que o inquilino entre com chaveiro, e, novamente, (o morador) precisa ligar para a PM. O tempo inteiro são questões que eles alegam que estão na convenção, mas que violam a lei. Na época que exigiram o pagamento do condomínio em dinheiro, mesmo, várias pessoas registraram boletins”, pontua.
Por fim, os condôminos também questionam o item número 8 da pauta, que determina que, em caso de óbito de um morador, “o acesso ao imóvel somente seja permitido após apresentação da certidão de inventariante”. “Estão querendo alterar até o Código Civil por aqui, que prevê no artigo 1.784 que a herança transmite-se, ‘desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários’. A transferência é imediata, não depende de nomeação de inventariante para ter acesso aos bens”, argumenta um dos moradores ouvidos.
Também serão votadas na assembleia questões relacionadas a obras do prédio; unidades abandonadas; e, também, será apresentada a prestação de contas das taxas de condomínio entre novembro de 2022 e dezembro deste ano; entre outras coisas.
Para especialista, edital tem “anomalias” e “ilegalidades”
Após ler a ata de convocação da assembleia a pedido de O TEMPO, o diretor regional de Minas Gerais da Associação Brasileira de Advogados do Mercado Imobiliário (Abami), Kênio Pereira, identificou uma série de pontos que ele considerou como “anomalias”, “absurdos” e “ilegalidades”. O profissional questionou questões em pelo menos sete das 15 pautas a serem votadas durante a reunião.
Para ele, uma das mais graves, porém, está logo na primeira questão a ser analisada, que é a Leitura da Ata da última assembleia realizada. “A Ata deve ser elaborada na hora, no decorrer da assembleia, de maneira que todos os participantes possam inserir sua manifestação e conferir de imediato o que foi registrado. A redação posterior possibilita a manipulação do que foi escrito, sendo que a subtração da fala de um condômino ou o acréscimo de algo que não foi dito, por exemplo, pode implicar no crime de falsidade ideológica, previsto no artigo 299 do Código Penal. É absurdo, meses depois da realização de uma assembleia com centenas de pessoas, a síndica desejar dar credibilidade numa ata ao ler o que foi escrito, pois, certamente, a maioria dos presentes não tem a menor condição de questionar o que ficou registrado”, pontua o advogado.
Segundo Pereira, os moradores têm o direito de repudiar o item 1, exigindo que a ata seja digitada no momento da reunião, tendo seu teor lido ao fim do encontro para quem desejar assinar o documento. Assim como as pessoas ouvidas pela reportagem, o advogado também demonstrou preocupação com relação à segunda pauta a ser votada, que prevê multa para quem “tumultuar” a assembleia.
“Não pode ser impedido o direito de manifestação dos condôminos, pois, mediante a evidência de irregularidades ou abusos por parte da administração, eles têm direito de falar e de fazer registrar o que disse para que as centenas de pessoas que não participaram da assembleia saibam o que foi mencionado, e tenham uma real ideia do que acontece no condomínio”, orienta.
Ele também afirma que os moradores têm o direito de filmar tudo que ocorrer durante a assembleia, para que fique registrada qualquer manipulação da ata, já que, em eventual ação judicial, é o documento que será avaliado pelo juiz.
Kênio Pereira ainda definiu como ilegal a exigência de certidão de iventariante do herdeiro para ter acesso ao apartamento de morador eventualmente morto. “Ele tem o direito de entrar no apartamento a partir da ocorrência do óbito, bastando se identificar. A administração cometerá abuso e ilegalidade ao impedir que o herdeiro acesse o apartamento, pois este já lhe pertence, independemente da abertura do inventário”, completou.
“Lei da mordaça não é aceitável em condomínio”, diz advogado
Ainda em análise ao documento, sobre o item 9, que prevê o acionamento na Justiça de unidades que “difamarem” e “desvalorizarem” os imóveis com denúncias, o advogado especialista em direito imobiliário estranhou o desejo da administração do prédio de processar a unidade, já que somente uma pessoa pode cometer injúria ou difamação. Para ele, “lei de mordaça” não é aceitável em condomínio. “Parece que a administração deseja agir de forma ditatorial, para coibir qualquer manifestação que desagrade a síndica que está há 40 anos na função, o que já é anormal”, afirma.
Pereira também questionou o item que prevê o acionamento do comando da PM contra policiais que questionem o regulamento interno, já que “a polícia tem o poder de interferir se alguma lei estiver sendo desrespeitada”. Ele também disse estranhar a prestação de contas q ue serárealizada referente a um período de 25 meses, já que, conforme o artigo 1.348, a aprovação deve ocorrer “obrigatoriamente a cada 12 meses”.
“O acúmulo de mais de 2 anos de documentos dificulta a apuração de qualquer dúvida. É direito dos condôminos terem acesso a todos os documentos, notas fiscais, contratos pelo menos 20 dias antes para conferirem se há algum problema, pois, sem esse prazo prévio, é impossível apurar a regularidade das contas e dos custos das obras em apenas alguns minutos na reunião”, orienta o advogado.
Por fim, Kênio Pereira critica a última frase do documento: “É expressamente proibida a entrada de convidados e pessoas sem relação com o Conjunto”. Segundo ele, os condôminos têm, sim, o direito de levar seu contador, advogados e procuradores, que, assim como os moradores, teriam direito a se manifestarem e registrarem falas nas atas.
“Eles são especialistas, sendo que o Direito Imobiliário e Condominial são complexos, não podendo a síndica impedir que um profissional qualificado solicite esclarecimentos e faça os comentários que visam informar o que está correto ou incorreto. Também não pode ser impedido o acesso de qualquer advogado, pois o Estatuto da OAB garante seu direito de participar de qualquer reunião que tenha ligação com seu cliente/contratante”, conclui o especialista.
Outro lado
Procurados por O TEMPO sobre a Ata, o advogado Faiçal Assrauy, que representa o condomínio do edifício JK, respondeu uma série de questionamentos acerca do edital de convocação da assembleia. Segundo o defensor, no estatuto está previsto que “qualquer interessado poderá montar sua chapa” e concorrer ao cargo de síndico na hora da assembleia. Segundo ele, todo morador em dia com o estatuto pode votar, sendo que a eleição acontece por meio de “livre manifestação” e com apuração pública por parte da Comissão Eleitoral.
Perguntado sobre o desejo de se aplicar multa em morador que “tumultuar a assembleia” e sobre quem definirá o que é ou não um tumulto, o advogado afirmou que qualquer eventual deliberação nesse sentido “buscará que seja mantido o respeito e a civilidade”. “As leis civis e penais, além do estatuto, devem ser respeitadas. Nunca um questionamento será definido como ‘tumultuar’. Mas caberá à comissão eleitoral avaliar eventuais ofensas à legislação”.
Sobre a exigência da certidão de inventariante, Assrauy afirmou que a medida visa a segurança do prédio e demais condôminos. “Naturalmente o herdeiro deve demonstrar sua condição de administrador do espólio do falecido afim de se evitar criminosos infiltrados no condomínio. Como o condomínio terá ciência de que a pessoa que se apresenta realmente é quem alega? Como saber se o morador realmente faleceu? Como saber se o herdeiro não está em litígio com os demais? Não é porque a pessoa é herdeira que tem direito absoluto sobre os bens do falecido”, argumentou.
Quando indagado sobre a aplicação de multa à “unidade cujo morador difame a imagem” do prédio, o advogado alegou que trata-se de uma demanda de moradores preocupados com a imagem do condomínio. “A ideia é buscar impedir difamações públicas e propagação de fake news contra o local de residência de todos”, escreveu.
Sobre o ponto envolvendo o comando da PMMG, o advogado disse apenas que “qualquer pessoa que desrespeita qualquer regramento deverá ser responsabilizada, seja civil ou militar. Morador ou não”.
Já sobre a prestação de contas entre 2022 e 2024, Assrauy alegou apenas que ela segue os regramentos estatutários e que “as contas estão à disposição dos moradores a qualquer tempo”.