As mais de 63 mil crianças de 0 a 3 anos que aguardam por vaga em creches em Minas Gerais podem ser justamente as que mais precisam desse direito, garantido pela Constituição Federal. Um estudo do Gabinete de Articulação para a Efetividade da Política da Educação no Brasil (Gaepe-Brasil) revelou que 54% dos municípios mineiros não adotam critérios de prioridade no acesso às vagas. Ou seja, na maioria das cidades, crianças em situação de risco, com deficiência, filhas de mães solo ou adolescentes, cujos pais têm baixa renda, não têm preferência assegurada no atendimento. Essa ausência de critérios, segundo especialistas, aprofunda a desigualdade no acesso à educação infantil em Minas Gerais, estado com uma taxa de escolarização de crianças de 0 a 3 anos abaixo da média nacional.

No Brasil, a realidade é semelhante: 56% dos municípios brasileiros ainda não estabeleceram regras para organizar a fila por creche, segundo o estudo Retrato da Educação Infantil no Brasil: Acesso e Disponibilidade de Vagas, do Gaepe-Brasil. “As crianças que mais precisam, e que têm prioridade assegurada por lei, não estão entrando antes na fila. Fica claro que não tem lugar para todos na creche”, alerta Alessandra Gotti, coordenadora do gabinete. “Não estou dizendo que só elas devem ser atendidas, todas as famílias têm esse direito. Mas, diante da falta de vagas, é preciso garantir equidade e gerir a fila com critérios justos”, acrescenta.

Segundo Gotti, o dado aponta uma necessidade urgente de mudança. “Isso é algo que pode ser feito imediatamente. Minas pode decidir agora por implantar os critérios de priorização na fila existente”, propõe. Essa é a terceira reportagem da série “Acesso negado”. Ontem, O TEMPO mostrou que a taxa de escolarização de crianças de 0 a 3 anos em Minas Gerais está abaixo da média nacional.  

Na comunidade Dandara, que nasceu de uma ocupação por moradia no bairro Trevo, região da Pampulha, em Belo Horizonte, Pedro Maria Neto, de 1 ano e 6 meses, espera há cerca de quatro meses por uma vaga em creche em período integral. A mãe, Kauane Santos, de 22 anos, trabalha em um shopping, sai de casa às 5h e só retorna por volta das 21h, em escala 6x1. “Só conseguimos vaga em creche pública por meio período. Quando dá meio-dia, o Pedro já está em casa. É complicado. Eu, sozinha com ele, tenho que trabalhar. Não tenho opção de ficar em casa”, desabafa.


Kauana e o filho Pedro Maria / Foto: Flávio Tavares I O TEMPO

Para que o menino não fique sozinho por quase nove horas, a bisavó de Pedro, de 72 anos, assume os cuidados dele durante a tarde e a noite. Mas é um sacrifício: ela abriu mão do trabalho como costureira para se dedicar à criança. “Minha avó cuida do Pedro até eu chegar do trabalho, mas não é o ideal. Ela tem as obrigações dela e já tem idade avançada. Hoje mesmo precisei faltar no shopping porque ela tinha consulta médica e não havia ninguém para ficar com meu filho”, conta Kauane. A mãe e a bisavó, seus únicos apoios, se acostumaram a fazer o que podem pelo menino: “Dá dó, mas não temos outra opção”. Sobre o caso, a reportagem demandou a prefeitura e aguarda retorno.

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Na avaliação da especialista em políticas públicas e pesquisadora da Fiocruz Minas, Elizabeth Fleury, quando famílias em situação de vulnerabilidade não têm prioridade na fila da creche, acabam presas a um ciclo de prejuízos — tanto para o desenvolvimento da criança quanto para a renda familiar. “As famílias com maior renda, quando não conseguem vaga, podem pagar por uma unidade privada ou até mesmo por uma babá. Já as mais prejudicadas são as mulheres pardas e negras, que estão na base da pirâmide social. Elas acabam sobrecarregadas: não podem abandonar o trabalho, nem deixar a criança”, afirma.

Com base no levantamento do Gaepe-Brasil, que contou com a participação de todos os municípios do país e revelou a falta de critérios nas filas por creche, o gabinete elaborou um manifesto enviado aos gestores educacionais em março deste ano, recomendando a priorização do serviço. “Esse é um caminho emergencial”, reforça a coordenadora Alessandra Gotti.

“Esse retrato da educação infantil revela quem são os mais afetados pela falta de acesso às creches. Investir na educação infantil é investir em melhoria social, na redução da violência e no fortalecimento da economia local”, reforça a promotora Giselle Ribeiro de Oliveira, coordenadora do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa da Educação (CAO-Educ).

Maioria das cidades cita ausência de apoio estadual 

O enfrentamento à falta de creches também passa por uma gestão colaborativa entre os entes federativos — uma lacuna ainda presente em Minas Gerais. De acordo com o levantamento Retrato da Educação Infantil no Brasil, realizado pelo Gaepe, 76% dos municípios mineiros afirmam não contar com apoio da rede estadual para a oferta de educação infantil. O índice é superior à média nacional, de 51% dos municípios sem esse tipo de parceria.

“Isso significa que o estado pode ser convidado e sensibilizado a olhar para o apoio que pode dar, especialmente para os municípios mais vulneráveis. Sem o apoio da gestão estadual, essas cidades não vão conseguir avançar na garantia do direito à educação infantil”, analisa Alessandra Gotti. Ela reforça que a “Constituição Federal prevê que os municípios atuam prioritariamente na educação infantil, mas que isso não significa exclusivamente”.

Conforme explica Alessandra, essa participação pode ocorrer por meio de formação, construção e ampliação de unidades escolares, convênios e apoio com material pedagógico. “A grande virada de chave no Brasil, e em Minas Gerais não vai ser diferente, é existir a compreensão de que só com a colaboração a gente vai avançar”, acrescenta.

Firmar acordos com metas, prazos e indicadores para lidar com o problema de falta de vagas em creches é objetivo do programa Crescer Juntos, idealizado pelo Ministério Público. “Adotamos uma estratégia articulada que envolve uma atuação estruturante junto aos municípios”, explica a promotora Giselle Ribeiro de Oliveira, coordenadora do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa da Educação (CAO-Educ). “Nosso foco é que esses municípios adotem ações de diagnóstico da demanda e pactuação de metas e planejamentos, além de uso eficiente de recursos públicos para ampliar o atendimento de forma permanente e contínua”, acrescenta.  

A promotora destaca que o projeto é lançado em um momento estratégico. Isso porque em 2025 os municípios devem elaborar os planos plurianuais. “É quando se é decidido onde será investido”. Conforme a Constituição, os planos devem ser finalizados e enviados ao poder Legislativo até o fim do primeiro ano de mandato. Ou seja, até dezembro. “Hoje pode ser uma despesa, mas, para o futuro, isso vai ser uma economia. Muitas famílias que não conseguem acesso à creche tendem a ter uma maior dependência de programas de transferência de renda e uma menor mobilidade social”, explica.  

Procurado sobre o resultado, o governo de Minas afirmou que, “de acordo com o que determina a Constituição Federal, a gestão da educação infantil é de responsabilidade prioritária dos municípios”. Apesar disso, garantiu manter “uma atuação cooperativa com as administrações municipais, incluindo repasse de recursos”. A pasta citou, como exemplo, dois programas destinados a auxiliar os municípios.

O primeiro é o Programa de Fortalecimento das Escolas Municipais, que, segundo o governo estadual, “auxilia as cidades a melhorarem a infraestrutura das unidades de ensino dos municípios”. Outra ação é o Mãos Dadas, que destinou R$ 1,2 bilhão a 163 municípios. Segundo o governo, os resultados incluem a construção de 194 escolas e creches, 424 reformas e ampliações, a entrega de mobiliários e equipamentos a 345 escolas e a aquisição de 93 veículos para transporte escolar.

O governo também mencionou a adesão do Estado e de todos os municípios ao Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, que “envolve um pacto entre os entes federativos (municípios, estados, Distrito Federal e União) para garantir o direito à alfabetização, um elemento essencial para o sucesso das trajetórias escolares”.