Roberto Hastenreiter, de 74 anos, sentou-se no banco do quintal de casa por volta das 15h desta terça-feira (29/7), como quem sabia que não repetiria aquele gesto tão cedo. O olhar, voltado para a paisagem verde ao redor, carregava o peso de uma despedida súbita. Aos pés, o cachorro vira-lata descansava. “É a minha parte preferida do lote. Vai tudo ficar aqui. Meus pés de banana, de laranja, de limão. Aqui eu tinha tudo, e vai ficar abandonado”, lamentou. Nem vinte minutos depois, o aposentado e a família — esposa, filha, cachorro, gato e periquito — foram retirados da propriedade, localizada na comunidade Quéias, no Vale do Ingá, em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
A medida foi necessária devido à elevação para o nível 2 de emergência da barragem B1-A, da empresa Emicon Mineração e Terraplanagem, o que significa que a estrutura não está segura. O alerta foi emitido no último dia 23 pela Agência Nacional de Mineração (ANM). Além da família Hastenreiter, o pedreiro Antônio Souza de Oliveira, de 55 anos, também foi removido do lote. Ele morava na residência que estava construindo para o trabalhador rural Odilon Souza, de 49 anos. Outras cinco famílias precisam ser retiradas de suas residências em um prazo de 15 dias, contados a partir do último sábado (26 de julho).
Roberto Hastenreiter, de 74 anos, no quintal da sua casa na comunidade Quéias I Foto: Alex de Jesus / O TEMPO
Roberto trocou a vida em Belo Horizonte pelo sossego da propriedade rural após se aposentar, há sete anos. A ironia é que, mesmo cercado pelo silêncio da mata e pela simplicidade dos poucos vizinhos, ele não tem conseguido dormir à noite. O morador da comunidade Quéias vive com medo de ser surpreendido pelos rejeitos da barragem B1-A, mesmo que, até o momento, não haja indícios de ruptura iminente, segundo as autoridades. “A barragem que se rompeu no desastre de Brumadinho não estava nem em alerta. Diziam que ela era muito segura e, de repente, arrebentou. Eu sei que não posso ficar aqui. Se eu ficar, posso morrer. Então, não consigo mais dormir, e estão me obrigando a abandonar tudo aquilo que é meu”, desabafou.
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Os moradores estão sendo encaminhados para moradias alugadas pela Prefeitura de Brumadinho, todas localizadas na região do município, com prioridade para mulheres, crianças e idosos. A responsabilidade das transferências é, na verdade, da mineradora, mas o Executivo municipal assumiu a função após uma suposta omissão da empresa. “Nós precisamos de respostas da mineradora. É uma responsabilidade muito grande. As minas do entorno, principalmente a B1-A, estão abandonadas desde 2014. O nível de emergência foi elevado porque faltam laudos que atestem a segurança das estruturas. Ou seja, na prática, não sabemos se hoje a barragem está realmente no nível 2 de emergência, ou se já está no nível 3, que é o máximo”, cobrou a advogada das famílias da comunidade Quéias, Deborah Jacques. Sobre o caso, a reportagem demandou a Emicon e aguarda retorno.
Foto: Alex de Jesus I O TEMPO
As remoções consideram o estilo de vida das famílias, desde a proximidade com escolas e locais de trabalho até a escolha de residências temporárias que também sejam rurais, com contato com a natureza e espaço para os animais. A Defesa Civil de Brumadinho está levando todos os pertences das famílias em caminhões e fazendo o transporte dos animais de estimação e dos gados. Antes de trancarem as casas por tempo indeterminado, os moradores avaliam se estão de acordo com a estadia alugada por meio de fotos. O aposentado Roberto, por exemplo, foi levado a um sítio em Brumadinho. “Por fotos, parece um local adequado. Mas, claro, longe do conforto do lar dessas pessoas. Elas estão deixando imóveis construídos com o suor do trabalho”, afirma a advogada Jacques.
Para a família Hastenreiter, o medo é que a mudança, até então temporária, se transforme em um destino permanente. “Não tem dia, nem hora, nem quando vamos voltar para casa. Depende da mineradora. Então, não vamos voltar nunca, né? Vou ficar morando na casa dos outros a vida inteira?”, reclamou Roberto.
O receio do aposentado está ligado à falta de informações por parte da mineradora. Segundo ele, desde que foi notificado pela Defesa Civil de Brumadinho de que deveria deixar sua casa, na última semana, não foi contatado pela Emicon. “A única vez que eles (representantes da empresa) vieram aqui foi há dois, três anos. Fincaram as placas da área de risco, me deram um radinho sem pilha, que nunca tocou. O aparelho deveria alertar para algum risco”, conta.
O pedreiro Antônio Souza de Oliveira, de 55 anos, assistiu em silêncio à saída de Roberto enquanto organizava os últimos pertences da casa vizinha. Ele também foi removido nesta terça-feira (29/7), pouco depois da família Hastenreiter. No caso de Antônio, a casa ainda estava em construção. A expectativa era de concluir a obra em agosto — que custou, segundo o proprietário Odilon Souza, de 49 anos, pelo menos R$ 120 mil. “Peguei essa casa do começo. Eu construí com Deus, com ajudantes. E agora tenho que sair, do nada? Agora que ia terminá-la em agosto… Se tivesse terminado, ia deixá-la aí, abandonada”, disse.
O pedreiro Antônio Souza de Oliveira, de 55 anos, posa em frente à casa que construiu e deixou nessa terça (29/7) I Foto: Alex de Jesus / O TEMPO
Além do reassentamento das famílias, a Prefeitura de Brumadinho informou que oferecerá apoio social por meio do Centro de Referência de Assistência Social Especializado em Calamidades (CRASEC). As ações incluem acompanhamento psicossocial, acesso a programas sociais e serviços públicos, além da intermediação de emprego por meio do SINE. Moradores da comunidade Quéias também reivindicam a instalação de câmeras de segurança nos lotes que serão desocupados, como forma de proteger o patrimônio. Segundo eles, a prefeitura se comprometeu a contratar o serviço de vigilância remota. A administração municipal foi questionada sobre a proposta, mas não respondeu até o fechamento desta edição.
“É muito triste sair da casa da gente”: grávida de 5 meses será a próxima a ser removida
Dayane Gonçalves, 33, assiste à movimentação da Defesa Civil em frente à sua casa, a espera da remoção I Foto: Alex de Jesus / O TEMPO
Deixar a casa em que vive em meio a uma gestação e após o outro filho, de 7 anos, se acostumar com uma nova escola não estava nos planos de Dayane Gonçalves, de 33 anos. No dia em que a notícia chegou, com uma visita da Defesa Civil ao lote, ela passou mal e precisou ser atendida por um médico. “Foi de repente. Ficou todo mundo assustado, e eu comecei a passar mal. Eu estou grávida e tive até sangramento. Foi por muito estresse. Essa mudança tira a paz da gente. Hoje mesmo, nem dormi de noite”, disse.
Dayane e o marido se mudaram para o lote na comunidade Quéias há nove anos e, segundo ela, há pouco mais de dois anos o entorno foi sinalizado com placas de “área de risco”. “Mas não explicaram nada. Só colocaram as placas”, lembra. A família será a próxima a ser transferida, com previsão de saída nesta quarta-feira (30/7). Os pertences já estão separados, e a mudança terá que incluir as galinhas e o cachorro.
“É muito triste deixar a nossa casa para ir morar na casa dos outros. É ruim demais. Pelo menos meu menino vai poder continuar na mesma escola, e meu marido, no trabalho. A gente fica receoso em abandonar o que é da gente. Mas vamos ter que deixar tudo para trás”, lamentou.
A reportagem demandou o governo de Minas sobre as ações para prevenção do risco por barragem na região e aguarda retorno.
Barragem em alerta
A barragem B1‑A, da Emicon Mineração e Terraplanagem, na comunidade de Quéias, em Brumadinho (MG), foi elevada para nível 2 de emergência pela Agência Nacional de Mineração (ANM). Esse é o penúltimo nível na escala de alerta (que vai de 1 a 3).
A classificação como nível 2 não indica risco iminente de ruptura, mas exige ações imediatas de segurança, como evacuação da Zona de Autossalvamento (ZAS) — área com tempo insuficiente para resposta em caso de colapso.
A elevação do nível de risco ocorreu devido à falta de entrega de documentos técnicos obrigatórios, como a Declaração de Conformidade e Operacionalidade (DCO) do Plano de Ação de Emergência (PAEBM), sistemas automatizados de alerta e videomonitoramento ausentes ou inadequados.
O Ministério Público aplicou multas diárias de R$ 5 mil, enquanto atua para garantir segurança e apoio às famílias da comunidade, além da apreensão dos passaportes dos sócios da empresa.
A estrutura tem 37 metros de altura (equivalente a um prédio de 12 andares) e 273 metros de extensão de crista, com capacidade de armazenar cerca de 914 mil metros cúbicos de rejeitos — um volume cerca de doze vezes menor do que a da barragem que rompeu em 2019, da Vale.