Violência cotidiana

Crimes de racismo disparam e registros em Minas quadruplicam em 2023

Levantamento da Sejusp apontou que foram 93 registros entre janeiro e março deste ano, número superior aos 22 do mesmo período do ano passado

Por Rayllan Oliveira
Publicado em 30 de maio de 2023 | 13:58
 
 
 
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"Somos todos Vinicius Junior". A frase utilizada em apoio ao atleta brasileiro do Real Madrid, vítima de racismo durante uma partida de futebol na Espanha, expõe, em seu sentido literal, histórias cotidianas de tantos brasileiros, alvos do mesmo crime. No país onde 56% da população se autodeclara preta ou parda, a violência contra negros é uma transgressão rotineira, amparada em uma estrutura social que ainda não se desprendeu das "algemas do passado".

Em Minas Gerais, por exemplo, os casos de racismo aumentaram entre 2022 e 2023. Foram 93 registros entre janeiro e março deste ano, número muito superior aos 22 episódios relatados às autoridades de segurança no mesmo período do ano passado. A crescente foi 322%, conforme o levantamento da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp-MG).

"É algo do nosso dia a dia, que me revolta muito e que, muitas das vezes, não podemos fazer nada", desabafa o cozinheiro Salatiel Menezes, de 26 anos, que denuncia ter sido novamente vítima de racismo durante o show do DJ Alok, no último sábado (27), em Nova Lima, na região metropolitana de Belo Horizonte.

O cozinheiro afirma ter sido xingado e espancado por seguranças do evento. "Hoje, convivo com uma dor enorme, porque além dessa violência, tem aquela quando as pessoas desconfiam do que eu falo. Dizem que a história está estranha, não acreditam que o fato de um homem preto estar num lugar de pessoas brancas não é motivo para tanto, sendo que, na verdade, é isso o que acontece", completa. 

Racismo é crime

O racismo é um crime previsto pela Lei nº 7.716, de 5 de Janeiro de 1989, e está inserido no Código Penal brasileiro. Ele ocorre quando há conduta discriminatória contra determinado grupo ou coletividade, sendo ela motivada por origem, raça, sexo, cor, idade. Em janeiro deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei 14.532 que aumentou a pena para quem comete esse crime. A punição passou de um a três anos para de dois a cinco anos de reclusão.

“O grande problema é que as pessoas, geralmente, não consideram o racismo como crime. Tratam apenas como um conflito de comunicação, falta de entendimento, o que não é uma verdade", avalia a especialista em diversidade e inclusão Sônia Lesse. Para ela, esses casos se tornam reincidentes quando os responsáveis pelos atos justificam o crime como um problema estrutural.

"Recorrem a esse argumento e falam que estão em desconstrução. É como se transferisse a responsabilidade individual para um espectro, um lugar, não identificado. Isso é muito penoso para a vítima. O racismo é um crime que deveria ser tratado igual as outras tantas violências graves que a nossa sociedade ainda vivencia", completa.

Conforme Sônia Lesse, embora o racismo seja um problema que acompanha a sociedade brasileira desde a sua colonização, a prática criminosa se dá por uma escolha de quem o comete. “Ele continua porque ainda existem pessoas que adotam esse comportamento para excluir pessoas negras”, avalia.

A especialista teme que a relativização do problema, com o argumento de racismo estrutural, iniba a aplicação de penas para os responsáveis pelo crime. “É um debate feito, geralmente, de forma equivocada. E isso dificulta até mesmo que a vítima consiga denunciar junto a autoridade pública, seja ela policial ou não”, indica. 

Racismo e Injúria Racial

Em janeiro deste ano, o crime de injúria racial passou a ser equiparado ao de racismo. Com a alteração, a Justiça pode aplicar penas maiores àqueles que são responsabilizados por cometerem atos de discriminação em função da cor, raça ou etnia. A mudança legislativa também tornou o delito imprescritível, podendo ser julgado a qualquer tempo, impossibilitando ainda que os réus desses casos respondam ao processo em liberdade, a partir do pagamento de fiança, que antes podia ser fixada pela autoridade policial. A pena, antes prevista de um a três anos, passou a ser de dois a cinco anos de reclusão.

“Racismo e injúria racial são crimes que estão previstos na mesma lei e que passou por essa modificação recente. Enquanto o primeiro, a gente pode exemplificar, ou definir, como segregação, o segundo está relacionado àqueles casos em que há ofensa verbal, xingamentos, e outros”, aponta a delegada Sílvia Mafuz, titular da Delegacia Especializada de Investigação de crimes de racismo, xenofobia, Lgbfobia e intolerâncias correlatas (Decrin), da Polícia Civil de Minas Gerais. 

Injúria Racial

Conforme o levantamento da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp-MG), as mudanças não inibiram novos casos. Entre janeiro e março deste ano, foram 137 denúncias registradas junto às autoridades de segurança. A quantidade representa um aumento de 16,10%, em relação às 118 notificações feitas no mesmo período do ano passado. 

“O que a gente percebe, geralmente, é que durante a investigação outros crimes também podem ter ocorrido. A vítima, inicialmente, narra os fatos e é registrado o boletim de ocorrência. Depois disso, as autoridades policiais começam a coletar os depoimentos de vítimas, testemunhas, e até de algumas provas que ajudem a esclarecer os fatos. Quando a investigação é concluída, é encaminhada para a Justiça, que define sobre a pena”, explica a delegada. 

Onda de apoio e conscientização

O episódio de racismo com o atleta Vinicius Junior, durante uma partida de futebol na Espanha, ocorrido no dia 20 de maio, gerou uma onda de manifestações e uma série de atos em apoio ao atleta do Real Madrid. Em Minas Gerais, no dia seguinte ao caso com o jogador brasileiro, a torcida do Cruzeiro exibiu uma faixa com os dizeres: “Não ao racismo”. O manifesto foi na Arena do Jacaré, onde, na ocasião, a Raposa enfrentou o Cuiabá pelo Campeonato Brasileiro. No último sábado (27), a faixa voltou a ser exibida por torcedores de Cruzeiro e Flamengo, no entorno do Maracanã, no Rio de Janeiro, onde as equipes se enfrentaram pela mesma competição.

Outro ato ocorreu na partida entre Atlético e Palmeiras, também pelo Campeonato Brasileiro. Antes da bola rolar, os 53 mil atleticanos presentes no Mineirão fizeram um mosaico com uma frase contra o racismo. Com as luzes dos celulares, torcedores formaram a mensagem “Racismo não”, em inglês. O manifesto foi em apoio ao atacante Vinicius Junior, do Real Madrid. 

Para a especialista em diversidade e inclusão Sônia Lesse, as manifestações são positivas e podem colaborar para que a sociedade passe a compreender o racismo como crime. No entanto, se isoladas, sem a responsabilização das pessoas que cometem essa transgressão, elas não terão impactos sociais. “Essas manifestações incentivam que outras vítimas denunciem, que o racismo acontece e que algo precisa ser feito. Mas as pessoas que cometem esses crimes precisam ser responsabilizadas. Esse precisa ser o exemplo”, destaca a especialista.

Ainda conforme Lesse, responsabilizar quem pratica esse crime é necessário, e inibe que a vítima se torne novamente alvo de outras violências. “Quando o racismo acontece, geralmente, a vítima é responsabilizada. Se a pessoa reage, então, ela é punida. É como se o papel da pessoa negra violentada fosse sofrer essa violência em silêncio. E era exatamente assim que ocorria no período da escravidão, uma violência silenciosa”, destaca a especialista.

No caso envolvendo o jogador brasileiro, ele chegou a ser expulso no final do segundo tempo após uma confusão com o goleiro do adversário. Vinicius Junior recebeu um golpe mata leão do rival, e, ao revidar a agressão com um tapa, foi expulso. A mesma punição não foi aplicada ao goleiro, mesmo após o lance ter sido analisado pelo VAR. Após o ocorrido, a liga responsável pela competição afastou o juiz da partida. 

Denúncia de racismo no show do DJ Alok

O episódio ocorrido com o cozinheiro Salatiel Meneses, de 26 anos, no último sábado (27), no show do DJ Alok, em Nova Lima, na região metropolitana da capital, é investigado pela Polícia Civil de Minas Gerais. Conforme a corporação, os envolvidos devem prestar depoimentos nos próximos dias. "A investigação ficará a cargo da 3ª Delegacia de Polícia Civil em Nova Lima”, informou a polícia em nota. A assessoria do show e a empresa organizadora do evento não se manifestaram sobre a denúncia.

De acordo com Meneses, a violência teve início quando ele chegou ao evento acompanhado de dois amigos. O cozinheiro afirma ter sido alvo dos olhares do segurança. “Eles ficaram perto de mim a noite toda, até que, em determinado momento, me abordaram, me revistaram e me levaram para um canto escuro”, relembra.

Neste local, para onde foi levado pelos profissionais, Meneses denuncia ter sido agredido. “Chegaram me batendo sem motivo, já que não encontraram nada comigo. No lugar para onde me levaram estavam outras pessoas pretas também apanhando. Os seguranças pensavam que eu estava com eles, mas não os conhecia. Fiquei no chão apanhando de graça”.

O cozinheiro afirma que seus amigos tentaram conter a abordagem dos seguranças. No entanto, como eles estavam em maior número, não foi possível.“As pessoas que foram comigo são brancas, e os seguranças quase não tocaram neles. Só que teve uma hora que a minha amiga acabou reagindo, pois quase a empurraram de uma escada. Um deles virou pra ela e disse: ‘acha que só porque é mulher você não vai apanhar?’. Deram dois tapas no rosto dela”, comenta.

As agressões provocaram ferimentos em várias partes do corpo de Meneses. Após o caso, ele acionou a polícia  e registrou um boletim de ocorrência. Na segunda-feira (29), o cozinheiro realizou o exame de corpo de delito, que deve auxiliar nas investigações. Segundo Meneses, mesmo apesar da revolta com o que ocorreu, ele chegou a procurar os responsáveis pelo evento. No entanto, teria sido ignorado por eles. “Um deles apenas leu a mensagem e nem respondeu”, completa. 

Para a especialista em diversidade e inclusão Sônia Lesse, a conduta dos responsáveis pelo evento é semelhante a de quem coaduna com a prática criminosa. “Se existe racismo hoje é porque alguém ainda possibilita isso. Então, a gente precisa cobrar responsabilidade a quem deve responsabilidade, seja o poder público, a empresa que financia determinado evento e também a quem cometeu o crime”, destaca. 

Como denunciar?

  • Em Belo Horizonte

Delegacia Especializada de Investigação de Crimes de Racismo, Xenofobia, LGBTFobia e Intolerâncias Correlatas (Decrin)

Endereço: Avenida Barbacena, 288, bairro Barro Preto, Belo Horizonte/MG.

  • No interior de Minas

Delegacia de Polícia Civil mais próxima.

  • Por telefone

Disque 100 - Direitos Humanos
Disque 181 - Disque Denúncia Unificado - DDU

 

* Com informações de Vitor Fórneas

 

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