Em uma esquina movimentada do bairro Ouro Preto, na região da Pampulha, um carrinho luminoso chamou a atenção de três adolescentes que passavam pela rua Mariana Oliveira Tavares, no início da noite. “Nossa, mas é comida venezuelana?”, indagou uma delas. A dúvida logo foi sanada por Carolina Del Valle Urbina, de 50 anos. Natural de Mérida, ao Noroeste da Venezuela, ela está entre os mais de 5 milhões de venezuelanos que deixaram o país nos últimos anos em função da crise política e econômica.
Com a filha Sthefanny Carolina, de 21 anos, chegou ao Brasil em 2019 e, no intervalo das diárias como faxineira - fonte de sustento desde que decidiu deixar o país de origem -, colocou em prática o desejo de vender lanches típicos da terra natal em Belo Horizonte, reconhecida pela Unesco como cidade criativa para a gastronomia. Em um carrinho pequeno, mas equipado com fogão, chapa e fritadeira, ela vende empanadas e cachorro-quente com a ajuda do marido, Carlos Rafael Villahermosa, de 41 anos, e da outra filha, Estefânia De Los Angeles, de 14 anos.
Empanada venezuelana preparada por Carolina leva feijão preto, banana da terra e carne seca - Foto: Fred Magno/ O TEMPO
“Todo mundo nos fala que nosso cachorro-quente é muito gostoso, que nossa empanada é deliciosa e que não querem saber de outra coisa para comer”, contou ela, orgulhosa enquanto preparava pedidos para um grupo de trabalhadores que fazia uma espécie de happy hour no ponto de venda. O negócio da família de Carolina, chamado de ‘Sabor Venezuelano’, integra a lista de 112.241 pequenos negócios gerenciados por estrangeiros no Brasil, de acordo com o Monitor do Microempreendedor Individual (MEI).
Antes de comprar o carrinho, Carolina e Carlos pensaram em abrir o negócio em uma loja. As opções eram um espaço no bairro Ouro Preto, onde moram, e outro no Mercado Novo, no Centro. O projeto, contudo, acabou sendo adiado. “O nosso maior desafio é seguir adiante, sem saber exatamente se nossa família na Venezuela segue bem, e de levar a nossa cultura gastronômica ao povo brasileiro”, salientou Carlos, que divide o preparo dos lanches com a esposa em meio ao trabalho como montador de móveis durante o dia.
Receita especial
Molhos que acompanham o cachorro-quente são produzidos por Carlos e a esposa, Carolina - Foto: Fred Magno/ O TEMPO
O diferencial do cachorro-quente vendido com a esposa há dois meses, segundo ele, é a salsicha servida sem molho de tomate. Nos adicionais, entram um mix de repolho e cenoura, cebola crua e molhos tradicionais. Receita semelhante ao que é feito pelo casal Luís Lopez e Genesis Perez, ambos de 32 anos. Eles deixaram a Ciudad de Bolívia e hoje são responsáveis por gerenciar dois pontos de venda de lanches do ‘Carteluo Fast Food’ nos bairros Planalto e Itapoã, na Pampulha.
“Carteluo é uma palavra única da Venezuela. Significa uma coisa muito boa, legal”, traduziu Genesis. Em relação ao cachorro-quente vendido por Carolina e Carlos, Luíz e Genesis acrescentaram outros diferenciais que eram de costume na Venezuela. O pão é amaciado após ficar em uma estufa em banho-maria. Já o topo do lanche recebe um ovo frito envolto com bacon, presunto e mussarela, além dos molhos a gosto dos clientes.
Receita comercializada no Carteluo é motivo de orgulho para Luiz e Genesi - Foto Fred Magno / O TEMPO
As vendas são realizadas há dois anos na avenida Portugal e na rua Coronel Costa Días. “E como se fala aqui em Belo Horizonte, o mineiro é muito difícil de agradar ele pela boca. A comida mineira é muito boa e isso era um desafio muito grande pra gente”, comentou Luís. Ele relembrou a chegada ao Brasil, em que ele e a esposa tinham, apenas, a ‘roupa do corpo’. “E é difícil quando você não tem aquele apoio da família, não tem dinheiro. Geralmente, a pessoa que vai em outro país tem pelo menos um dinheiro e dá pra empreender alguma coisa. Nós chegamos com nada, mas eu dou graças a Deus porque conhecemos pessoas boas. Aqui em Minas, o povo é muito acolhedor”, agradeceu ele.
Planos futuros
Sem pensar em retornar à terra natal, o casal planeja expandir o negócio que, atualmente, está prestes a se tornar uma micro empresa. “Não é fácil, mas graças a Deus o povo está gostando e indica o nosso lanche, o que é muito bom porque nós trabalhamos sozinhos e não sobra tempo para fazermos muita publicidade. Nossa ideia é ir crescendo e fazer um ponto em cada em cada bairro para que o pessoal não tenha que sair de tão longe para vir aqui”, projetou o venezuelano, que além da companheira, tem a ajuda dos sogros e dois cunhados na atividade.
Cachorro-quente do Carteluo não leva molho de tomate, como feito na Venezuela - Foto Fred Magno / O TEMPO
Brasil é destaque nas Américas, diz ONU
O porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) nas Américas, Luiz Fernando Godinho, sinalizou que, no Brasil, a estrutura de acolhida de imigrantes, sobretudo da Venezuela, é modelo para outros países da região, por facilitar a acomodação estrangeira no país. Dados da Secretaria Nacional de Justiça mostram que mais de 519 mil venezuelanos estão no país hoje.
Desde 2014, a Polícia Federal analisou mais de 254 mil decisões de refúgio solicitadas por quem deixou a Venezuela. Deste total, 136.082 foram deferidas. “Essa operação cuida desde a entrada da pessoa pela fronteira, o acolhimento emergencial nos abrigos de Roraima, passando de novo pela questão do registro, da documentação e facilitando a inserção dessas pessoas em outras cidades do país que tem uma melhor capacidade de absorção da mão de obra estrangeira”, salientou o representante da Organização das Nações Unidas (ONU).
Estudos, segundo Godinho, indicam que há ganhos econômicos nos países que conseguem regularizar os imigrantes para inseri-los no mercado de trabalho. “A pessoa regularizada e que tem uma inserção econômica, ela tem maior poder de compra, então ela vai poder gastar mais e com isso movimentar a economia e muitas dessas pessoas abrem seus negócios e oferecem empregos para os nacionais”, complementou Godinho, que também frisa ganhos culturais e sociais.
“Essas pessoas trazem com elas suas bagagens, seus conhecimentos. A inserção no mercado de trabalho é um fator fundamental para que elas possam realmente reconstruir e retribuir com os seus saberes e o seu potencial produtivo e econômico”, arrematou Luiz Fernando.
Capacitação abre caminhos
A analista do Sebrae Minas Michelle Chalub citou que a entidade dispõe de capacitação para os refugiados conseguirem abrir seus próprios negócios. Chalub confirmou uma dificuldade de contratação desse público no mercado formal, principalmente em função da limitação do idioma. “Eu acredito que a barreira do idioma é uma das mais latentes para que ele realmente possa se sentir mais confortável e inclusive buscar ajuda”, frisou.
Conforme a profissional, há um acompanhamento das atividades, para auxiliar os profissionais durante a jornada profissional. “Ter esse suporte personalizado para o empreendedor migrante é muito importante também, para que ele se conecte com outros empreendedores locais. A gente oferta programas de capacitação, gratuitos e com taxas, cursos, consultorias em gestão, para dar o acesso à informação para eles”, sublinhou.
Do recomeço à referência gastronômica
Em um dos bairros mais tradicionais de Belo Horizonte, o Floresta, o casal Yenither Olivar, de 33 anos, e Reinaldo Nieves, de 44, comanda o Dorian Cacao Venezuela, em uma casa tradicional da rua Silva Jardim. O nome escolhido é uma homenagem ao filho, de 10 anos. Hoje, eles empregam dois profissionais fixos e têm dois freelancers que são acionados em caso de necessidade.
Reinaldo e Yenither apostam em cardápio praticamente todo venezuelano, nas comidas e bebidas - Foto Fred Magno / O TEMPO
As portas aos clientes abrem de quinta a domingo. O cardápio foi pensado tendo a culinária local como o principal atrativo. Nos destaques, a cachapa - um prato típico feito com farinha de milho e que se assemelha a uma panqueca -, e o tekeño - aperitivo recheado com mussarela e servido com Guasacaca, molho que tem como ingredientes principais o abacate e o coentro. No caso da cachapa, há recheios distintos.
“Nós demoramos quase 8 meses para pôr a cachapa no cardápio. Primeiro, porque o milho não é colhido no mesmo tempo que a gente colhe lá na Venezuela. Então, assim, o milho é muito leitoso, não dava ponto na massa. Aí nós tivemos que refazer a receita, adaptar para o que a gente tem aqui”, relembrou Reinaldo. Outro obstáculo foi com o queijo, uma das principais iguarias da culinária mineira, mas que tinha textura e sabores distintos ao que era utilizado no preparo do prato na Venezuela.
“Hoje a nossa cachapa tem um queijo que a gente usa a base de um queijo existente aqui, sim, porque eu não tenho acesso a leite fresco, para tentar fazer o máximo parecido com o que o nosso. Aí eu refaço uma massa, levo no tempero e ao ponto que a gente precisa”, detalhou. Questionado sobre como é feita a manipulação, Reinaldo não titubeou: “você vai morrer sem ficar sabendo”, brincou.
A famosa cachapa venezuelana, sendo finalizada por Reinaldo antes de chegar à mesa dos clientes - Foto Fred Magno / O TEMPO
Na Venezuela, Yenither trabalhava como professora de turismo e Reinaldo como capoeirista e designer gráfico. Antes de abrir o Dorian, eles venderam brownie nas ruas, além de trabalhar em outras áreas como em aplicativos de viagens. “É um caminho completamente diferente do que a gente fazia, então, além do recurso econômico, tem também um conhecimento da área em que a gente está. Então, cada passo, cada feira que a gente foi, cada doce vendido na rua, foram nos preparando para cada passo seguinte que a gente estava dando”, relatou Yenither.
Recentemente, o casal recebeu, do Ministério da Cultura, o reconhecimento de que o restaurante é um ponto de cultura venezuelana. “A gente busca no máximo possível se aproximar das comidas típicas de lá. Um dos nossos maiores prazeres é quando vem algum venezuelano aqui, ou alguém que já teve contato com a nossa culinária, e aí terminam de comer com a frase: ‘isso é comida venezuelana de verdade’. Quando alguém entra aqui e fala isso, esse aí é o maior prazer que você possa imaginar. Porque você sabe que está chegando no coração das pessoas, inclusive dos brasileiros”, completou Reinaldo
Mirando expansão no Dorian, Reinaldo e Yenither não visitam a família desde que chegaram a Brasil - Foto Fred Magno / O TEMPO
A família, inclusive, pretende expandir a operação, incluindo atrações culturais como aulas de capoeira, e adquirindo novos equipamentos. Com este plano, as viagens à Venezuela, onde toda a família mora, ficarão em segundo plano. “Desde que a gente migrou, a gente não conseguiu voltar. Vou passar 9 anos sem ver meus pais, meus irmãos. A viagem fica muito cara. Pela falta de oferta e demanda de voos, você viajar para a Venezuela pode custar o mesmo que ir para a Europa”, ilustrou Yenither.