Bilhões em dívidas

Entenda a crise da 123milhas desde o começo até agora

Mineira anunciou suspensão da emissão de bilhetes no dia 18 de agosto e, desde então, atravessa crises sucessivas


Publicado em 30 de agosto de 2023 | 14:01
 
 
 
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A 123milhas tornou-se um dos assuntos mais comentados do Brasil em agosto de 2023. Antes, uma empresa mineira promissora que tinha — segundo ela própria — o quarto site de turismo mais acessado do Brasil, desta vez chegou ao noticiário, às redes sociais e à Justiça devido a uma crise que afeta milhares de clientes e envolve bilhões de reais.

Do anúncio da suspensão da emissão de bilhetes aéreos de setembro a dezembro até a entrada com o pedido de recuperação judicial da empresa, passaram-se 12 dias. Nesse intervalo, ela se tornou alvo de mais de 1.000 ações judiciais só em Minas, demitiu centenas de funcionários e foi parar em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF).

Relembre, abaixo, o passo a passo da crise da 123milhas:  

O início da 123milhas

A empresa foi fundada em 2016 em Belo Horizonte. A década era de efervescência da criação de novas empresas de tecnologia na capital, como Hotmart e Rock Content. O negócio foi criado pelos irmãos Ramiro Julio Soares Madureira e Augusto Júlio Soares Madureira, de uma família produtora de café. Eles são discretos, raramente dão entrevistas, e uma das poucas fotos públicas de algum deles na internet é a de Augusto na rede profissional LinkedIn.

O capital social da empresa, isto é, o valor inicial investido na abertura, foi de R$ 1 milhão, segundo dados da Receita Federal. O investimento se multiplicou e, em 2022, segundo estimativa do banco BTG, o faturamento da empresa chegou a R$ 5 bilhões.

Os volumes investidos pela empresa em publicidade são consideráveis. Em 2022, ela foi a segunda maior anunciante publicitária do Brasil e investiu R$ 1,18 bilhão em espaços publicitários nos veículos brasileiros, de acordo com o ranking anual Agências & Anunciantes.

Como a 123milhas funciona

A Hotmilhas, empresa do mesmo grupo, compra milhas de consumidores. A 123milhas utiliza esse banco para vender passagens por meio das milhas e, assim, comercializá-las com descontos de até 50% do preço habitual.

A crise da empresa começou com seus pacotes Promo. Os clientes compravam bilhetes que ainda não haviam sido obtidos pela 123milhas. São opções ainda mais baratas de viagem porque têm datas flexíveis — o cliente escolhe uma data até anos antes do passeio, e os bilhetes são emitidos pouco antes com uma possível diferença de dias escolhidos. Na nota em que justifica a suspensão de emissão dos bilhetes da categoria, ela diz que a “persistência de fatores econômicos e de mercado adversos, relacionados principalmente à pressão da demanda e ao preço das tarifas aéreas” levaram à crise. 

Especialistas no mercado já diziam há meses que o modelo de negócio da empresa poderia ser uma bolha e estourar, pois as passagens aéreas não baixaram significativamente após a fase mais aguda da pandemia, mesmo com o aumento da demanda. Na prática, as passagens promocionais vendidas pela 123milhas estavam, agora, muito abaixo do valor de mercado.  

A 123milhas vai além das passagens aéreas e também comercializa reserva de hotel e pacotes completos de viagem. Mesmo em meio às polêmicas e à recuperação judicial, o site continua funcionando. 

O anúncio da suspensão dos bilhetes

A 123milhas anunciou, no dia 18 de agosto, uma sexta-feira, que os bilhetes do pacote flexível Promo previstos para setembro a dezembro estavam suspensos. Ela não ofereceu reembolso em dinheiro aos clientes, somente um voucher dividido em várias vezes.

Na prática, uma pessoa que comprou uma passagem para a Europa por R$ 5.000, por exemplo, já não conseguiria fazer a mesma viagem por esse valor. Isso porque, se a passagem foi comprada em 2022, agora está mais cara e, além disso, não é possível utilizar todos os vouchers na compra do mesmo bilhete.

A 123milhas nunca respondeu à imprensa quantos clientes foram afetados, mas é possível afirmar que são milhares — só na Justiça de Minas Gerais, pelo menos 1.600 ações foram abertas contra ela desde o dia 18. A empresa afirma que a venda pacotes Promo correspondem a cerca de 5% de sua cartela.

Por alguns dias, clientes que procuraram a sede da 123milhas, no edifício Seculus (rua Paraíba, 330, Santa Efigênia), conseguiram fechar acordos com a empresa, mas o atendimento foi suspenso. No dia 25 de agosto, a Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG) montou uma base móvel de atendimento na porta da empresa para atender clientes que não têm condições financeiras de entrar na Justiça.

A defensoria entrou com uma ação exigindo que os clientes lesados sejam indenizados por danos morais e pede que o patrimônio dos próprios sócios seja colocado à disposição da Justiça.

A fusão com a Maxmilhas

A Maxmilhas é uma empresa com modelo similar — compra de milhas e venda de passagens mais baratas — e também fundada em Belo Horizonte. Ela foi criada alguns anos antes da 123milhas, em 2013, por Max Oliveira, que inaugurou esse mercado no Brasil.

Em janeiro de 2023, ela oficializou sua fusão com a 123milhas. A parceria criou uma das maiores OTAs do Brasil, sigla para online travel agency, em inglês, ou agência de viagem online.

A operação das duas seguiu de forma independente, mas a crise da parceira também afeta a Maxmilhas. A empresa anunciou que parcelará o pagamento das milhas aos clientes em três vezes. Em nota enviada a eles, afirma ter sido pega de surpresa pela situação da 123milhas e que se viu em uma “situação delicada”, já que seu acesso ao capital de giro foi restringido.  

A suspensão da Hotmilhas

A Hotmilhas, outra empresa do grupo da 123milhas, atrasou os pagamentos previstos para o dia 25 de agosto e tirou seus serviços do ar. Os serviços de compra de milhas foram retomados logo depois de o pedido de recuperação judicial da 123milhas ser formalizado, mas clientes ouvidos pela reportagem afirmam não ser sido pagos.   

A demissão em massa da 123milhas

Na semana após a suspensão do pacote Promo, a empresa garantiu aos funcionários que a crise era passageira e que os empregos estavam garantidos, segundo relatos de trabalhadores. Não foi o que ocorreu, entretanto. Na manhã de segunda-feira (28/08), a empresa demitiu a maioria de seus colaboradores. Ela não assegurou que pagará os direitos rescisórios, segundo alguns deles.

A empresa foi questionada pela imprensa repetidas vezes sobre quantos trabalhadores demitiu, mas nunca respondeu. No LinkedIn da empresa, ela declara ter entre 1.000 e 5.000 funcionários. Oficialmente, segundo declarou no pedido de recuperação judicial, restam 309. 

A suspensão dos vouchers da 123milhas

Desde o início da crise, vários clientes reclamavam que ela não emitiu no tempo previsto os vouchers de reembolso que havia prometido. No dia 29 de agosto, o site da 123milhas passou a recusar o uso de qualquer voucher. Isso ocorreu antes do anúncio do pedido de recuperação judicial ser divulgado e, depois disso, ela oficializou a suspensão em seu site. “Enquanto estiver em tramitação o processo de Recuperação Judicial, seu voucher não poderá ser solicitado”, avisa.

Agora, não se sabe quando os clientes serão reembolsados de alguma forma. Se a recuperação judicial for aceita pela Justiça, as ações contra a empresa são suspensas durante 180 dias.

A CPI das Pirâmides Financeiras

Os sócios da 123milhas foram convocados a depor na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Pirâmides Financeiras. Ela foi instaurada em junho de 2023 para investigar, inicialmente, negócios de criptomoedas. Dois dias depois da suspensão dos bilhetes da 123milhas, o presidente da CPI, Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), anunciou que convocaria os donos da empresa como testemunhas.

Os advogados da dupla tentaram conseguir um habeas corpus para que ela não fosse obrigada a comparecer à CPI, porém ele foi negado pela ministra do STF Cármen Lúcia. Ela autorizou que eles não respondam a perguntas que possam incriminá-los. O depoimento dos dois estava marcado para a tarde do dia 29 de agosto, porém o advogado afirmou um conflito de agenda, e o testemunho foi remarcado para 30 de agosto. Eles faltaram novamente e podem ser conduzidos coercitivamente. O deputado federal Duarte Junior (PSB-MA) propõe abrir uma CPI específica para tratar o caso da 123milhas.

Outras ações correm paralelamente. A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), vinculada ao Ministério da Justiça, por exemplo, exige esclarecimentos da 123milhas e acompanha o caso. Uma reunião entre a pasta e a empresa foi marcada para sexta-feira (1º/9). O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) pede o bloqueio de R$ 20 milhões da empresa e uma indenização de pelo menos R$ 10 milhões aos clientes.

A recuperação judicial 

A empresa protocolou um pedido de recuperação judicial no dia 29 de agosto. Ela foi aceita pela Justiça no dia 31 de agosto. Com isso, a empresa está desobrigada a pagar suas dívidas por 180 dias e terá que apresentar um plano de pagamento a todos os credores com prazo de dois anos para cumpri-lo. No documento, ela declara uma dívida de R$ 2,3 bilhões.

A recuperação judicial envolve três empresas: a Novum, a 123milhas e a Art Viagens (por trás da Hotmilhas). A Novum é a holding que gerencia a 123milhas, isto é, a sociedade que controla a empresa. A Art Viagens está fora dessa holding, mas é controlada pelos mesmos sócios e é a principal fornecedora da 123milhas e emprega 118 pessoas atualmente. Quando a recuperação judicial é aceita, a empresa negocia prazos e condições de pagamento com cada grupo que deve, e o processo é acompanhado pela Justiça.

Demissões na Maxmilhas

No início de setembro, a Maxmilhas, que concretizou uma fusão com a 123milhas neste ano, também realizou uma demissão em massa. Com 460 funcionários, cerca de 18% foram demitidos.

Polícia Civil abre inquérito contra 123milhas

A Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) abriu um inquérito para investigar possíveis crimes cometidos pela 123milhas, baseado em cerca de 150 denúncias, que vão de estelionato à prática de pirâmide financeira. Supostas vítimas começaram a ser ouvidas no dia 4 de setembro, e os donos da empresa devem ser intimados a depor.

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