Em um supermercado, um homem surge comparando o preço de um ovo de chocolate com o da picanha e chamando sua filha, uma criança, para uma conversa, quando expõe sem rodeios: “Coelhinho da Páscoa não existe, não é ele que te dá o ovo da Páscoa”. A menina, primeiro, reage com surpresa enquanto tenta processar as falas do pai. Depois, mais uma vez sendo filmada, ela aparece chorando, sendo consolada pela mãe, que repreende quando o homem ameça expor outros “segredos” no fim do ano, referindo-se à fantasia de Papai Noel na época do Natal.

Os dois vídeos curtos, em sequência, viralizaram nas redes sociais na véspera do domingo de Páscoa (20 de abril, neste ano), gerando tanto apoio, daqueles que sustentam que ele fez certo ao “dizer a verdade”, quanto críticas, dos que enxergaram crueldade e exposição indevida da criança naquela cena.

O desmedido hábito de publicar imagens dos filhos, aliás, se tornou um fenômeno tão comum que, agora, há um termo que designar essa prática. Trata-se do “sharenting”, expressão em língua inglesa que junta as palavras “share”, que significa “compartilhar”, e “parenting”, que se relaciona à criação de filhos. 

“O sharenting pode desencadear brigas e problemas de relacionamento à medida que a criança começa a ter noção de que a imagem dela está sendo exposta ou que foi exposta de uma forma que ela não concorde e desaprove”, alerta a psicóloga e pesquisadora Renata Borja, inteirando que esse comportamento dos pais pode trazer prejuízos para meninos e meninas no contato com seus pares. Isso porque algumas postagens podem fazer dessas crianças alvos de bullying. “Nenhum pai ou mãe tem o controle de como os filhos enfrentarão esse tipo de exposição”, adverte.

“É provável que muitas crianças, ao crescerem, interpretem essa atitude dos pais como desrespeito e desatenção para com elas. No caso daquelas que se tornam famosas com essas postagens, poderão surgir problemas associados à fama que essa criança não escolheu para si”, situa, inteirando que, na avaliação dela, conversas delicadas para as crianças, que vão gerar quebra de expectativa e reações emocionais, não deveriam acontecer nas redes sociais, mas em um ambiente mais seguro, privado e acolhedor.

O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), aliás, fala sobre a necessidade coletiva de proteção à dignidade das crianças, assinalando que elas não podem ser expostas a tratamentos vexatórios e constrangedores – regra que vale também para o que acontece na internet.

Direito à fantasia

Por outro lado, se o debate é sobre a sustentar ou não fantasias como a de Coelhinho da Páscoa, Fada do Dente ou Papai Noel para as crianças, a psicóloga lembra que esta é uma decisão que cabe à família, mas pondera que as fantasias cumprem papel importante no desenvolvimento infantil. “Nesta fase, estamos elaborando uma série de questões da vida, e só conseguimos fazer isso através da fabulação”, explica Renata, acrescentando que o estímulo à criatividade alcança também aos adultos, que precisam se organizar para criar essa ambiência e essa surpresa para seus filhos.

A psicóloga e educadora parental Fernanda Teles concorda. “É algo importante, porque brincar é edificante, porque a imaginação é a melhor ferramenta para a criança lidar com o mundo à sua volta”, diz, assinalando ser um mau negócio usar dessas estórias para chantagear os pequenos. “Sou totalmente contra isso de falar o ano inteiro que a criança não vai ganhar presente se ela não se comportar. Acredito, e a parentalidade positiva fala muito nisso, que elas precisam ser encorajadas a agir da melhor maneira sem recorrer à ameaça. De onde tiramos a ideia absurda de que a criança, para ter boas atitudes, precisa se sentir mal?”, provoca. 

Para ela, a situação ainda fica pior se, depois de um ano inteiro sob esse aviso e mesmo descumprindo acordos, a criança é presenteada. “Como vai ficar a cabeça dela? Apesar de ameaçada, ganha presente. Fica parecendo que é tudo uma grande bravata e que ela pode se comportar como quiser que ainda será gratificada”, critica.

Quando acabar com o faz de conta

Renata Borja reconhece: não é recomendável postergar demais o fim do faz de conta. “Manter por muito tempo pode ser problemático, fazendo, por exemplo, a criança ser vista como ridícula ou ingênua demais entre seus pares, que já vão saber que aquela fantasia não é real”, comenta Renata.

Mas trazer a verdade à tona não é um passe-livre para uma atitude insensível. Ao contrário. “Afinal, é o modo como contamos que vai influenciar na reação da criança. Então, se for de um jeito carinhoso, acolhedor, será melhor”, estabelece.

“O ideal é que os pais façam isso conforme a curiosidade da criança. Se a criança questiona, quer saber algo, os pais devem falar – e não devem tentar manter aquela fantasia a qualquer custo”, aconselha.

A partir de então, ela situa que cabe aos adultos colocar essas informações de um jeito tranquilo, conforme as demandas dos pequenos. “Ou seja, vamos responder às dúvidas que eles trouxerem, tentando entender o que querem saber. Às vezes, a gente vem com um discurso pronto, mas que soa inócuo, porque o que eles querem saber é o mais simples”, examina, lembrando que a maioria das crianças também passa por esse processo de descoberta, uma vez que essas estórias e fantasias são tradições de muitos lares. 

Acolhimento

Pode acontecer da criança descobrir que é tudo faz de conta na conversa com colegas de escola, primos mais velhos ou mesmo pela internet. Nessas situações, Fernanda Teles volta a recomendar um diálogo franco, mas cuidadoso. “Vale explicar nossas intenções, justificar que nutrimos essa fantasia porque é divertido e faz bem, mostrar que este é um gesto de amor”, aconselha.

E se, ao descobrir que é tudo uma brincadeira, a criança ficar triste ou chateada, a psicóloga indica que suas emoções devem ser validadas. “Devemos nos colocar no lugar dela, entender que é normal que ela fique mal com o fim de uma fantasia – nós, adultos, também ficamos. Em seguida, após esse acolhimento, vamos expor nossas razões, explicar aquela dinâmica”, sugere, contextualizando que validar emoções não significa validar comportamentos ruis – “ou seja, podemos ficar tristes, mas não podemos agredir ninguém por isso”.