O maior ídolo de Jean é Ayrton Senna. Já Alberto elege Pelé, enquanto Marcos coloca no altar a própria mãe. Basta um giro rápido pelas redes sociais para conferir esse padrão que se estende também ao mundo real. Na última semana, um vídeo viralizou ao colocar em discussão o fato de homens heterossexuais privilegiarem relações de afeto com outros homens, como nos casos do churrasco do final de semana, o futebol de domingo, a viagem com os amigos e os conselhos nos dias difíceis, reservado às mulheres as atividades estritamente sexuais. O comportamento recebeu o popular nome de “homens heterossexuais homoafetivos” nas redes e logo provocou polêmicas.
O psicólogo Rodrigo Tavares Mendonça reforça que não se trata de “um conceito criado pela psicologia e não possui uma definição científica clara”. “Esse conceito é usado para se referir a homens que gostam sexualmente apenas de mulheres (heterossexuais), mas que possuem relações intensas de amizade apenas com homens (homoafetivos). Repare na palavra ‘apenas’. Esse conceito não é somente uma descrição de um tipo de comportamento masculino. Não é, inclusive, um tipo de manifestação da orientação sexual masculina. É uma crítica à cultura heterossexual masculina, como definiu a filósofa estadunidense Marilyn Frye na década de 1980”, diz.
O entrevistado conta que foi Marilyn Frye quem criou o conceito de “cultura heterossexual homoafetiva”. “O que ela quis dizer é que, normalmente, homens heterossexuais gostam sexualmente de mulheres, mas afetivamente gostam apenas de outros homens. O comportamento padrão é este: homens desejam mulheres, mas admiram e respeitam apenas outros homens. É como se dissessem: ‘Desejo sexualmente mulheres, mas gosto mesmo é de estar e conversar com outros homens. Gosto do que está no universo masculino’”, detalha Tavares. Para ele, a consequência negativa desse padrão de comportamento fica visível “quando os homens não escutam o que as mulheres dizem, as ignoram e não as reconhecem como iguais em valor”, diz.
Diferenças
Tavares destaca diferenças com outros tipos de comportamentos, como, por exemplo, aquele apelidado de “bromance”, denominação para “homens que possuem uma amizade íntima e profunda com outros homens, um companheirismo, mas sem interesse sexual”. Já a bissexualidade é entendida como “uma manifestação da orientação sexual, que pode acontecer tanto em homens quanto em mulheres”. “Refere-se a homens e mulheres que têm interesse sexual pelos dois gêneros”. No caso de uma homossexualidade reprimida, a conclusão é de homens ou mulheres que “não aceitam a própria homossexualidade e a escondem tanto dos outros quanto de si”.
O psicólogo atesta que não é incomum as “pessoas gostarem de se relacionar com aquelas parecidas com elas mesmas”. “Às vezes, a diferença atrai, mas normalmente espanta e facilita mal entendidos. Esse é um dos motivos de homens serem mais amigos de homens, e mulheres serem mais amigas de mulheres. Outras semelhanças, como interesses ou posicionamentos políticos parecidos, aproximam as pessoas. A verdade é que ‘os opostos se distraem, e os dispostos se atraem’, como bem disse o cantor brasileiro Fernando Anitelli”, cita. Segundo ele, existe um mecanismo psicológico por trás dessa dinâmica de relacionamentos, baseada em um reconhecimento de valor.
“Pessoas que concordam umas com as outras geralmente se admiram e se reconhecem mutuamente. E o inverso também é verdadeiro, pessoas que discordam umas das outras geralmente se desprezam e se negam mutuamente”, resume, sem deixar de ignorar que, muitas vezes, tal comportamento abre a porteira para a intolerância. “A identidade masculina tradicional foi construída socialmente com base em valores ideais, como ser forte, provedor, corajoso e líder. A mulher, por outro lado, teve como valores ideais tradicionais, por exemplo, o cuidado, a sensibilidade, a beleza e a submissão”, recupera Tavares, tentando avaliar “a lógica social do comportamento”.
Histórico
A contradição inerente ao afeto entre homens na sociedade brasileira é que, muitas vezes, ele acontece de forma velada, com maneiras de tratamento que buscam disfarçar esse sentimento. “A demonstração de amor e carinho de um homem por outro pode ser interpretada socialmente como um comportamento feminino. Homens delicados, pacientes e altruístas podem ser vistos como afeminados. Por medo de serem reconhecidos assim, homens acabam se apegando rigidamente à identidade masculina tradicional, evitando a manifestação natural dos afetos considerados femininos pela cultura dominante”, analisa Tavares. Ele afirma que, “tradicionalmente, homens ocupam posições de mais importância social e poder na sociedade brasileira”.
“As pessoas admiram homens com capacidade de influência e liderança, com visão de futuro e coragem para inovar, com força física, com equilíbrio emocional, com sucesso profissional, etc. O trabalho tradicional das mulheres de cuidar e educar esses homens não aparece. Somente nas últimas décadas começaram a aparecer mulheres nas mesmas posições de importância social e poder para receberem a mesma admiração. Assim, normalmente as características ou habilidades femininas não são reconhecidas com o mesmo valor, como se elas carregassem o piano para os homens tocarem”, compara. O psicólogo sublinha que, “se considerarmos a afetividade como manifestação de sentimentos, como amor e carinho, certamente reconheceremos a homoafetividade em todas as relações humanas”, o que tornaria tal termo muito amplo.
“A afetividade pode ser interpretada como vivência de desejos, emoções e valores que afetam a pessoa. O que acontece na ‘cultura heterossexual homoafetiva’, segundo a filósofa estadunidense, é que, com excessão do interesse sexual pelo sexo feminino, os elementos que afetam os homens tradicionais estão todos no universo masculino. Como se, tradicionalmente, os homens gostassem apenas de outros homens, apesar de terem interesse sexual apenas por mulheres”, arremata Rodrigo Tavares Mendonça.
Terapia pode ser ferramenta útil
Para homens que, afora o sexo, preferem se relacionar com outros homens, mas não estão totalmente satisfeitos com essa escolha, muitas vezes produto de um meio social e de uma educação repressora, o psicólogo Rodrigo Tavares Mendonça sugere que começar a fazer terapia pode ser uma saída.
“Na prática clínica, o psicólogo pode ajudar o homem a se conhecer melhor, a se reconhecer como ele é na realidade. A tentativa de ser o ‘homem ideal’, de ter todas as características e valores que compõem a identidade masculina tradicional, como ser forte, provedor, independente, corajoso e líder, pode causar muito sofrimento”, avalia, salientando que o perigo maior é de “perder de vista a diversidade”.
“Existem homens diferentes, que podem, inclusive, se interessar por elementos tradicionalmente colocados no universo feminino e continuarem a serem homens heterossexuais. A psicoterapia pode ajudar o homem a se conhecer melhor e a se aceitar, além, inclusive, de ajudá-lo a mudar características psicológicas que estão causando sofrimento. E o mesmo vale para as mulheres, na verdade”, finaliza Tavares.