Um vídeo do influenciador digital Felca com quase 50 milhões de visualizações acendeu o debate em todo o Brasil e colocou em destaque o tema da adultização. As denúncias levaram à prisão preventiva do influenciador Hytalo Santos e chegaram ao Congresso Nacional, com um projeto do senador Alessandro Vieira (MDB), que prevê regras para a proteção de crianças e adolescentes na internet, aprovado no Senado e pronto para ser votado na Câmara com o apoio de todos os partidos, à exceção de setores do PL e do Novo. 

A psicóloga e sexóloga Carolina Freitas, especialista em Educação Sexual, lembra que é preciso “tomar cuidado para não confundir adultização e erotização, como vem acontecendo”. “Adultização é quando crianças e adolescentes são levadas a assumir papéis, comportamentos e até aparências de pessoas adultas antes da hora. Isso prejudica o desenvolvimento emocional, cognitivo e também o psicossexual. A erotização é uma das formas de adultização, na qual crianças e adolescentes são expostas a conteúdos, gestos, danças e imagens de cunho sexual que não estão de acordo com a maturidade psicossexual adequada”, pontua. 

A também psicóloga e sexóloga Cida Lopes corrobora. “Do ponto de vista psicológico, adultizar uma criança significa tratá-la como se ela fosse um adulto, seja cobrando maturidade emocional, impondo responsabilidades acima da sua capacidade ou expondo-a a ambientes e conteúdos não apropriados para sua idade. Isso afeta o desenvolvimento da identidade, a autoestima e a noção de limites da criança. Do ponto de vista sexológico, a adultização se manifesta quando a criança é exposta e incentivada a repetir comportamentos com conotação sexual antes da idade adequada. Essa exposição pode criar distorções na formação da sexualidade e deixar a criança mais vulnerável a abusos”, alerta. 

Segundo ela, os pais precisam estar atentos ao “uso precoce de palavras e expressões com conotação adulta ou sexual, como a repetição de frases ou falas ouvidas em contextos impróprios, comentários sobre a aparência física com foco sensual, do tipo ‘eu sou sexy’, ‘eu sou gostosa’, referência a relacionamentos adultos como ‘eu tenho crush’, ‘vou namorar’, e qualquer tipo de comportamento que tenha essa conotação”. 

Se a criança demonstra uma “vaidade que imita padrões adultos, como uma preocupação excessiva com o corpo, uma tentativa de seduzir ou de sempre provocar o adulto e fica muito agressiva ou irritada quando é tratada como criança”, também é preciso ligar o alerta. Brincadeiras “com temática sexualizada, como namorar e dançar funk com postura erotizada” devem ser outro foco de atenção dos responsáveis. “Pais, mães e responsáveis devem observar se as brincadeiras estão adequadas à idade, assim como a linguagem, os gestos e dancinhas, as roupas, as amizades, o que a criança faz quando está online, com quem e o que está conversando”, reforça Carolina. 

Vigilância

Nesse sentido, não é à toa que uma das investidas da denúncia de Felca e do projeto na Câmara e no Senado atinge as plataformas digitais. “Os algoritmos da plataforma de vídeos e redes sociais desempenham um papel central na aceleração da adultização e erotização precoce das crianças, especialmente quando operam sem filtros de idade eficazes. Esses sistemas de recomendação foram criados para reter a atenção do usuário, e, no caso de uma criança, podem expô-la continuamente a conteúdos que não respeitam seu estágio de desenvolvimento psicológico, emocional e sexual. Por exemplo, se uma criança assiste a um vídeo com dança sensualizada, o sistema tende a sugerir mais conteúdos semelhantes, entrando num ciclo de reforço”, observa Cida. 

Carolina salienta que, “como os algoritmos não distinguem infância de vida adulta, eles leem apenas engajamento”. “Isso acelera a adultização, incluindo a sexual, e coloca meninas e meninos em contato precoce com padrões de erotização que não correspondem ao seu desenvolvimento, podendo aumentar riscos de autoestima fragilizada, transtornos de imagem corporal, pressão social, e exploração e violência sexual. Por exemplo, crianças podem ser direcionadas para vídeos de maquiagem, looks, dancinhas sensualizadas, muitas vezes reproduzindo padrões adultos”. 

Ela lamenta que, “ao notar que uma criança interage com vídeos de danças ou influenciadores adultos, a plataforma cria uma bolha onde esse tipo de material é o mais recomendado, definindo assim um ciclo de intensificação da adultização e inclusive atraindo olhares de potenciais violentadores”. 

Entre as principais consequências estariam “o desenvolvimento emocional prejudicado, aumento da ansiedade, baixa autoestima, sexualidade desorganizada e precoce, aumento da vulnerabilidade ao abuso sexual e à exploração, dificuldade em estabelecer limites em relação ao próprio corpo e ao corpo do outro, e comportamentos de risco na adolescência, não desenvolvendo a noção de autocuidado e de proteção”, enumera Cida. 

Antídoto

Enquanto o Estado brasileiro se movimenta para coibir, com as ferramentas de que dispõe, o problema da adultização, Carolina destaca que é fundamental ter em mente a diferença entre “educação para sexualidade e sexualização”. “A educação sexual é um processo saudável que deve ser feito de forma adequada à idade. Ela orienta a criança no conhecimento do corpo, respeito, direitos, higiene e consentimento. Já a sexualização é a imposição de comportamentos, imagens ou papéis adultos à criança antes de ela estar pronta cognitivamente e emocionalmente para vivê-los”, compara. 

Cida complementa que “a curiosidade natural faz parte do desenvolvimento infantil e é saudável quando surge de forma espontânea, gradual e compatível com a idade da criança”. “No entanto, quando essa curiosidade é acelerada por estímulos externos, como os conteúdos digitais inadequados, pode se transformar em um processo de adultização prejudicial, com impactos emocionais e comportamentais”. 

Carolina afirma que pais, mães e responsáveis devem perceber essas diferenças. “Primeiro, é importante compreender que o ambiente digital pode ser tão ou mais desprotegido que o fora das telas. Por isso, é essencial observar o que é adequado à idade da criança. No mundo online, os adultos têm o papel de filtrar conteúdos, acompanhar o que é assistido, e, principalmente, conversar sobre o que aparece na tela. Esse diálogo dá contexto, ajuda a diferenciar curiosidade natural de influências externas e fortalece a criança para lidar com o que encontra. Assim, a conscientização acontece de forma contínua e protetiva, sem medo, mas com presença e orientação”, afiança Carolina. 

“Perguntas inocentes sobre o corpo, o nascimento do bebê ou papéis sociais dos adultos normalmente estão de acordo com a idade da criança”, diz Cida, para quem “estimular atividades próprias da infância, como brincar, imaginar, conviver, explorar o mundo real, proporcionar que a criança tenha vivências com crianças da mesma idade e fora do ambiente digital” são uma bela forma de os pais as protegerem.

Responsabilidade das plataformas digitais

A psicóloga e sexóloga Carolina Freitas não tem dúvidas de que “do ponto de vista da saúde mental infantil, as empresas de tecnologia deveriam assumir uma responsabilidade ativa e preventiva, pautadas pelos Direitos Humanos e das Crianças, já que seus algoritmos e ambientes digitais têm impacto direto no desenvolvimento das crianças”.

“Alguns pontos-chave como moderação proativa de conteúdos, design com foco no bem-estar infantil e ferramentas de proteção acessíveis aos pais são essenciais. As empresas têm a obrigação ética e social de proteger os usuários mais jovens, criando um ambiente digital que preserve a infância em vez de acelerá-la”, avalia a entrevistada. 

Cida Lopes, sexóloga e psicóloga, concorda, e opina que “oferecer ferramentas acessíveis e eficazes aos responsáveis, como limite de tempo de tela, bloqueio de conteúdos e relatórios de uso” seria de grande importância. “A prevenção da adultização infantil e a promoção de uma infância mais saudável na era digital exige um esforço coletivo e intersetorial, envolvendo educadores, escolas, gestores públicos, mídia, organização, sociedade e atores sociais”, ratifica Cida. 

Carolina resume a função que cada um deveria exercer nesta força-tarefa em prol das crianças e adolescentes. “A família deveria filtrar conteúdos, conversar sobre telas e oferecer educação sexual positiva. A escola deve primar pela educação digital crítica, com professores qualificados a promover espaços de diálogo sem tabu. As políticas públicas deveriam regulamentar as plataformas de forma efetiva, realizar campanhas de conscientização e oferecer apoio psicológico e orientação parental. E a comunidade deveria se conscientizar e sensibilizar com o tema, denunciando, sendo rede de apoio responsável e produzindo conteúdo infantil seguro e culturalmente relevante”, finaliza.