Comportamento

As críticas a Paolla Oliveira e Yasmin Brunet e o corpo feminino sob vigilância

Alvos preferenciais da pressão estética e do etarismo, mulheres lidam com intromissões e um constante olhar censor para si

Por Alex Bessas
Publicado em 24 de janeiro de 2024 | 06:40
 
 
 
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Rainha de bateria da escola de samba Acadêmicos do Grande Rio, que desfila no Grupo Especial no Carnaval do Rio de Janeiro, a atriz Paolla Oliveira tem sido alvo, nas redes sociais, de uma onda de comentários depreciativos, que criticam sua aparência e seu corpo e a acusam de estar envelhecendo. Há até quem se sinta à vontade para fazer sugestões não solicitadas de procedimentos estéticos e dietas, que essas pessoas juram que fariam bem a ela.

Aos ataques, alguns até disfarçados de bem-querer, a artista reagiu, primeiro publicando um vídeo em defesa de se acolher o corpo real, com todas as suas imperfeições, sem cair nas armadilhas da neurótica pressão estética – que atinge a todos, mas que afeta fundamentalmente as mulheres. Posteriormente, ela falou sobre o assunto em uma entrevista ao “Fantástico”. “Eu respondo, eu argumento, eu faço vídeos. Eu me sinto corajosa de estar fazendo isso. Do alto do meu privilégio, uma mulher branca, padrão, bem-sucedida, eu estou falando: eles não me deixam em paz”, desabafou. 

Situação semelhante acometeu a modelo, influenciadora e empresária Yasmin Brunet. Confinada no “Big Brother Brasil (BBB) 24”, ela foi criticada por outros participantes do reality, que fizeram comentários nada abonadores sobre seu corpo, aparência, idade e forma de se vestir.

Os episódios, claro, repercutiram, expondo a maneira como o corpo feminino – mesmo que esteja o mais próximo dos tais padrões de beleza – costuma ser um alvo fácil de comentários um tanto sem noção. E, diante disso, muita gente, sobretudo nas redes sociais, passou a questionar os impactos de tanta vigilância e crítica para a saúde mental da “sister” – e das mulheres em geral. Para a psicóloga clínica Tatiana Freitas Wandekoken, contudo, “restringir os impactos desses julgamentos à esfera da saúde mental e emocional é subestimar o quanto essas expectativas influenciam as vidas das mulheres”, indica, citando, por exemplo, que essas exigências fazem com que mulheres tenham também prejuízos financeiros e profissionais.  

“Afinal, desde o início da infância reforçamos que um dos grandes objetivos da vida de uma menina/mulher é sua aparência física e, consequentemente, seu relacionamento amoroso. Dessa forma, mulheres passam anos investindo tempo, energia e muito dinheiro em procedimentos estéticos, roupas, enquanto homens estão gastando esse tempo e dinheiro com cursos, viagens, aprimorando suas capacidades profissionais”, reflete.  

Tatiana prossegue citando as diversas consequências sociais dessa pressão. “Imagine quantas mulheres deixaram de ir à praia, às festas ou de comer alguma coisa específica naquele restaurante maravilhoso só porque estavam com medo do que pensariam sobre seus corpos?”, questiona. “E, quando falamos da saúde, falamos da possibilidade de uma percepção de si mesma excessivamente negativa, problemas relacionados à autoimagem, alimentação desregulada, transtornos alimentares, ansiedade, depressão e muitas outras consequências possíveis”, complementa, lembrando que as vidas das mulheres são afetadas por essa lógica em todas as suas dimensões – financeira, profissional, social, pessoal, interpessoal. 

Corpo público 

As cenas exibidas no reality, líder de audiência no país, e a ampla visibilidade que tiveram os comentários depreciativos sobre o corpo de Paolla Oliveira também expõem a facilidade como opiniões e julgamentos recaem sobre as mulheres, quase como se as pessoas se sentissem convidadas a fazer comentários sobre elas. Na avaliação de Tatiana, esse comportamento de hipervigilância da aparência física das mulheres faz parte de um conjunto de práticas e normas sociais que criam expectativas diferentes a depender do gênero da pessoa. 

A psicóloga Tatiana Freitas Wandekoken propõe um exercício de fabulação para compreender os estereótipos de gênero e como eles são passados. “Imagine que você é uma criança vivendo ali no início dos anos 2000. Você acabou de chegar da escola e quer jogar jogos online com sua internet discada e seu PC enorme. Ao acessar os sites, você se depara com uma categoria específica além daquelas que qualquer um esperaria, como ‘ação’, ‘jogos de tabuleiro’, etc.: ‘jogos para meninas’. Nessa categoria, você seria inundado por jogos de cuidados domésticos, cuidados com bebês/crianças, de compras, desfiles de moda e namoro (e casamento)”, diz, assinalando que, infelizmente, essas categorias e jogos existem ainda hoje. “E, como se não fosse suficientemente ruim, hoje também existem jogos de procedimentos estéticos – voltados para meninas, claro”, indica. Em seguida, ela pontua que é por meio de brincadeiras, cores, roupas, filmes, desenhos, livros, propagandas, músicas, jornais e tudo mais que é produzido culturalmente que ensinamos o que é “ser mulher” e o que se espera dessa categoria.  

Idade e roupa 

Mais um tópico que apareceu nas conversas sobre Yasmin Brunet, no “BBB 24”, e sobre Paolla Oliveira, nas redes sociais, demonstra como o etarismo é especialmente implacável com as mulheres: as duas foram achincalhadas pelo simples fato de envelhecerem. “Esse ponto também entra na lógica das expectativas de gênero, em especial à capacidade reprodutiva das mulheres”, opina Tatiana Freitas Wandekoken. “Ora, de acordo com essa lógica, um dos grandes propósitos da existência das mulheres é a reprodução. Logo, se essa capacidade está prejudicada – seja por causa da idade ou por qualquer outro impeditivo –, essa mulher perderia algum ‘valor’. Ao afirmar isso, estamos, mais uma vez, reduzindo o valor e a vida das mulheres à reprodução e à maternidade”, justifica. 

Além disso, como se não bastassem os comentários sobre o corpo, a idade e a relação com a comida, Yasmin também foi alvo de críticas pela forma como se veste. No caso, ela foi acusada de usar roupas muito “provocantes” – comentários que, mais uma vez, explicitam como as escolhas de moda das mulheres continuam a ser vigiadas, sendo motivo de polêmica e debate. A ideia de que a mulher pode ser deliberadamente sedutora para obter privilégios também apareceu em conversas sobre a dançarina manauara Isabelle – que, pelo simples fato de ter proximidade com um dos participantes do reality, foi acusada de seduzi-lo para, assim, ter vantagens no jogo. 

Sobre o tema, Tatiana Freitas Wandekoken alerta ser fundamental entender o que significa dizer que uma peça de roupa é “provocante”. “Ao falarmos isso, reforçamos que a escolha da mulher de vestir-se de determinada maneira é a origem de um comportamento: o assédio e a violência sexual. Isso implica uma relação de causalidade, como se a roupa que a mulher veste fosse a causa da violência sexual”, critica, pontuando que, se adotamos essa lógica, seguimos ensinando nossas meninas e mulheres a não serem violentadas, “enquanto deveríamos estar ensinando aos meninos e homens a não violentar”. Ela prossegue argumentando que, em termos práticos, “não é possível dizer que há, especialmente no Brasil, liberdade para as mulheres se vestirem da forma que desejam, a fim de expressar sua individualidade e criatividade, porque, quando elas o fazem, covardemente, fazemos dessa expressão a consagração de suas culpas”.  

Até que o mundo mude…  

Reconhecendo que só uma profunda transformação cultural iria solucionar, efetivamente, os tantos problemas e obstáculos impostos às mulheres, Tatiana Freitas Wandekoken avalia que existem, sim, estratégias para lidar de forma menos danosa com essas tantas formas de vigilância e julgamento, tanto de si mesmas quanto dos outros.  

“Eu sempre reforço a necessidade de estratégias de cuidado. Entretanto, é importante reforçar que o cuidado depende da intenção. Isso quer dizer que pouco importa qual o comportamento em si, mas a intenção/motivação por trás daquele comportamento”, reflete. “Fazer exercício físico é autocuidado? Depende! Se a pessoa vai à academia porque se sente culpada por ter comido algo no dia anterior, não é cuidado, é punição. Isso quer dizer que todo comportamento pode ser um ato de cuidado se nossa intenção for o cuidado”, aponta, acrescentando que não são todos que precisam de acompanhamento terapêutico, mas que todos se beneficiariam de um bom atendimento psicológico. 

“Uma boa terapia também nos ensina a compreender as intenções de nossos comportamentos, tal como ajuda a desenvolver habilidades necessárias para ‘navegar’ nessas interações sociais”, conclui a profissional de saúde.

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