O amor pelo outro pode até ser fundamental – como eternizou João Gilberto no clássico da Bossa Nova “Wave”, em que canta “é impossível ser feliz sozinho”. Mas o amor-próprio também é. E que nos desculpe também Vinícius de Moraes, que cantava “é melhor se sofrer junto que viver feliz sozinho”. A ciência prova o contrário: é melhor estar só do que mal-acompanhado.
Pode parecer óbvio, mas pesquisadores das Universidades de Nevada e Michigan, nos Estados Unidos, colocaram o dedo na ferida e perceberam que relacionamentos destrutivos podem afetar negativamente a saúde das pessoas tanto quanto o hábito de fumar ou beber.
Segundo o estudo, discussões recorrentes entre casais podem afetar a saúde mental, provocar produção maior do hormônio do estresse – causando, consequentemente, inflamações e alterações no apetite – e potencializar os riscos de depressão, ansiedade e síndrome do pânico.
Além disso, uma pesquisa publicada no periódico “Psychosomatic Medicine” mostrou que pessoas que têm poucas interações positivas com o parceiro possuem 8,5% mais chances de ter um ataque cardíaco ou um Acidente Vascular Cerebral (AVC).
“Somos frutos da cultura em que vivemos, e a cultura ocidental prega que é preciso ter um par amoroso, estar sozinho é o mesmo que estar jogado. Por isso, a pressão por sermos casais faz com que as pessoas aceitem e fiquem em qualquer tipo de relacionamento, qualquer coisa é melhor do que ficar sozinho. As pessoas só acham que vão ser felizes assim, tendo uma família, e vão colocando condições para a felicidade”, explica o psicólogo, mestre e doutor em neurociência cognitiva Yuri Bussin.
“Um relacionamento ruim abala tudo, porque está ligado ao emocional. Não tem um botão de liga e desliga, isso te consome no trabalho e nas amizades, a pessoa desaparece, porque emoções negativas vampirizam”, completa o especialista.
Mas será mesmo que solteirice e felicidade combinam? Parece que sim. Essa, inclusive, é uma tendência mundial. Uma projeção realizada pela Organization for Economic Co-operation and Development (OECD) mostrou que, até 2030, o número de casas com apenas um morador vai subir 75% na França, 71% na Nova Zelândia e 60% na Inglaterra.
No Brasil, segundo o IBGE, 10,4 milhões de pessoas vivem sozinhas e, de acordo uma pesquisa realizada pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), 48% delas decidiram viver sozinhas por vontade própria. Quando questionados sobre o principal significado de morar sozinho, as principais associações são independência (25%), sensação de liberdade (23%) e paz (12%).
Ainda segundo os entrevistados, os principais benefícios de não ter ninguém morando sob o mesmo teto é privacidade (50%), não ser obrigado a dar satisfação da própria vida a outras pessoas (37%), liberdade para realizar atividades diárias sem interferência de ninguém (30%) e poder receber visitas quando quiser (23%). O estudo aponta, ainda, que 72% dos entrevistados se sentem mais livres para gastar seus rendimentos desde que passaram a viver sozinhos.
Para a psicanalista e escritora Regina Navarro, ser solteiro pode proporcionar uma vida com mais amigos, interação social e determinação para cumprir os objetivos. “Essa mudança de mentalidade vem acontecendo desde a criação da pílula anticoncepcional nos anos 60, com a revolução sexual. Estamos em processo de mudança na forma de pensar e viver. Acredito que, daqui a algum tempo, menos pessoas vão se fechar em uma relação a dois. Elas vão optar por relações múltiplas, porque o amor romântico que povoa a mentalidade do Ocidente começa a dar sinais de enfraquecimento e a sair de cena. Os ensejos contemporâneos são desenvolver suas potencialidades com outras formas de amar não exclusivas, livres”, avalia a psicanalista.
Segundo a escritora, nem todo solteiro padece de solidão, assim como nem todo casal está livre de vivê-la. O problema é a busca por uma segurança afetiva, a mania de achar que o casamento é a única maneira de ser afetivamente feliz. “O moralismo e o preconceito limitam a vida, gerando sofrimentos. As pessoas têm percebido que esse modelo mais tradicional não se enquadra para muitos, é um modelo que não traz respostas satisfatórias. A crítica a esse modelo, que prega a monogamia, é que ele acredita que duas pessoas se completam e não falta mais nada. Você idealiza suas expectativas e, por isso, vem o desencanto”, pontua.
Vida a dois: desejo ou imposição social?
Para a professora do departamento de psicologia da PUC Minas Anna Cristina Pegonaro, a questão é que somos, desde cedo, condicionados a procurar incessantemente um par amoroso, pagando, inclusive, preços altos para mantê-lo. E não dá para saber o que realmente se deseja ou o que se aprendeu a desejar, afinal “ter alguém” sempre foi o objetivo, principalmente entre as mulheres – sem que haja o menor questionamento.
“É uma cobrança que existe até na natureza, os animais se juntam em pares. É um paradigma cultural, social e religioso constituir uma relação, porque a visão é que só assim, em pares, é possível construir uma família. Por isso a cobrança, porque se você não tem isso, você sente que está faltando algo, você está imbuído da ideia de que estar em par é melhor. A gente não para e pensa de onde isso vem e não se questiona de tão enraizado que é", observa a professora.
E para provar a tese, um levantamento realizado pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia de São Paulo constatou que a solidão é o maior temor de quem chega a uma idade avançada. De acordo com Regina Navarro, é preciso entender que o estado de contentamento e satisfação está além do sucesso de um relacionamento a dois e inclui projetos realizados, amizades e conquistas.
“É fundamental que as pessoas percebam as suas singularidades e se livrem dessas crenças, que possam ter seus próprios projetos, amigos, sem precisar ter alguém ao lado. O autoconhecimento te deixa mais apto até para uma relação amorosa, você escolhe um par pela afinidade, não pela necessidade”, conclui.
Precisamos falar de solitude
Dora Figueiredo, 26, cresceu ouvindo os contos de fadas, como “Cinderela”, “Bela Adormecida”, “Rapunzel” e “Branca de Neve”, todas à espera de um príncipe que lhes fizessem felizes para sempre. Mas, depois de sofrer um bocado com medo da solidão, a youtuber, que fala para mais de 1,9 milhão de seguidores sobre relacionamento, descobriu como viver bem sem companhia.
“Sempre tive esse conceito introjetado de que um príncipe encantado ia aparecer e resolver os meus problemas, ia me sentir feliz e realizada só depois de ser pedida em casamento, ter uma festa e, depois, ter os meus filhos. Eu sempre tive pavor de ficar sozinha”, conta a estudante que, pela primeira vez desde os 14 anos, está solteira. “Me permiti estar sozinha depois de emendar vários relacionamentos, estou há um ano solteira, meu recorde. Mas nunca me amei tanto e fui tão feliz. As pessoas acham que sou amargurada, mas hoje eu sei que não existe uma única pessoa no mundo que vá me satisfazer por completo e completar todas as minhas necessidades, isso não existe”, desabafa.
“Antes, a única exigência que eu tinha era a pessoa querer um relacionamento comigo, hoje eu não aceito menos do que estar completamente apaixonada. Prefiro estar sozinha do que estar presa a uma convenção”, afirma.
Mas o projeto afetivo sabático da youtuber não quer dizer que ela não tenha planos para se relacionar. “Eu sou pisciana, amo me apaixonar e sei que vou continuar encontrando muitas pessoas pelo meu caminho. Eu quero ter filhos no futuro, mas não me prendo a relacionamentos ruins mais por isso, porque criar uma pessoa independe de duas pessoas, tanto faz ter um pai, o essencial é ter uma rede de apoio, e isso eu tenho, nunca vou estar sozinha”, afirma.
E Dora ainda dá o conselho: “Toda vez que alguém fala que terminou, eu falo ‘que bom’, porque, se terminou, era porque algo não estava bom, algum dos dois não queria o mesmo tanto. Por que para o homem solteiro terminar o relacionamento é vida, e para a mulher é o fim? Para a mulher terminar o relacionamento é ser desesperada, e o homem comemora com os amigos como se fosse um livramento, ele é o garanhão. Isso é um medo introjetado, porque você nunca está sozinha”, aconselha. “Em um mundo que você vê nas redes sociais todos felizes e se declarando e que tem Rafa Kalimann sendo pedida em namoro com fogos de artifício, você pensa que ser solteira é não estar vivendo certo, mas não é bem assim”, completa a influenciadora.
Para a psicóloga Anna Cristina Pegonaro, muitas vezes as pessoas confundem solidão e abandono. “A solidão está associada a depressão, isolamento, falta de aceitação em um grupo e se sentir solitário mesmo cercado de pessoas, é um sentimento que não se encaixa. Mas, hoje, falamos em solitude, que é estar sozinho por uma escolha, escolha essa que é fundamental. Precisamos aprender a ser boas companhias para nós, só assim é possível estar em harmonia. Nós chegamos ao mundo sozinhos e deixaremos sozinhos quando morrermos, por isso estar só é completude”, afirma.
Mas para aqueles que batem no peito, orgulhosos da solteirice, o doutor em neurociência cognitiva Yuri Bussin alerta que é preciso cuidado para não cair no “dilema do porco-espinho”. Segundo o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), autor da teoria, é preciso encontrar o equilíbrio na convivência humana. Para ele, os animais precisam ficar juntos para se protegerem do frio, mas se machucam e se espetam quando se aproximam demais.
A dica do terapeuta é adquirir uma nova visão do mundo, do amor e do sexo e não depender mais do amor exclusivo de alguém para manter a autoestima. Tudo certo em chegar em casa, escolher uma playlist e abrir um vinho sem ninguém para impressionar. “As pessoas têm dificuldade de estar sozinhas, porque têm dificuldades em lidar com o próprio eu, mas o bem-estar depende unicamente de você. As pessoas podem agregar, mas não são determinantes para a sua felicidade”, explica.
Resumindo: Vinícius, João Gilberto e Tom Jobim erraram, impossível mesmo é viver sem autoamor.