Um amor exagerado, que brota à primeira vista e até parece coisa de cinema, com direito a presentes, surpresas, declarações efusivas e outras tantas demonstrações de afeição que, logo no início da relação, vão surgindo em cascata.

A descrição acima, que soa ao enredo de um idealizado enlace afetivo, quase um conto de fadas, pode, na verdade, ser um alerta para o que, lá na frente, vai ser revelar uma cilada. Aliás, estamos falando aqui de uma estratégia de sedução tão manjada que já até ganhou nome próprio: trata-se do “love bombing” (“bombardeio de amor”, em tradução livre).

O problema desse comportamento, explica o psicólogo e escritor João Luiz Marques, é que tanto mimo costuma ser convertido em um instrumento de manipulação. Além do mais, mesmo em casos em que esta não seja propriamente a intenção, esses gestos um tanto exuberantes podem ser menos uma prova de afeto e mais uma prova de que aquela pessoa precisa de ajuda. 

Manipulação 

“O ‘love bombing’ é um apaixonamento muito precoce. Nesses casos, o sujeito pode, para manipular o outro, simular um sentimento de amor, que, na verdade, não foi sequer construído”, explica o pesquisador de psicologia das masculinidades. “Mesmo que a pessoa tenha consciência de que as coisas parecem estar caminhando rápido demais, que ainda é muito cedo para demonstrações tão explícitas de carinho, com o tempo, essas atitudes vão potencialmente quebrando barreiras, fazendo que o outro fique com a guarda aberta. É nesse momento que o pesadelo começa”, detalha. 

Marques expõe que, após o bombardeio de amor, quando o alvo é atingido, todo aquele encantamento se esvai. “Isso cria na outra pessoa uma sensação de que ela fez algo de errado. Ela vai se culpar e até ficar paranoica por não compreender o que causou aquela mudança de comportamento”, informa. O objetivo, nesses casos, é manter o outro refém dessas descargas de amor. “O manipulador vai modular suas ações. Quando quiser se afastar, vai retirar esses sinais de afeição. Quando quiser se reaproximar, vai voltar a ter aquelas atitudes amorosas”, diz. 

Também reticente diante de demonstrações de amor muito efusivas, a psicóloga clínica Telma Cunha acredita que essas atitudes, muitas vezes, se converterem em frustração ou em instrumento de manipulação. “Às vezes, a pessoa faz algo que impressiona, mas, em troca, implícita ou explicitamente, ela cobra que o outro também faça algo”, aponta.

Ela considera que a situação pode levar a desdobramentos problemáticos. De um lado, esse indivíduo que está depositando muita energia na relação que está se iniciando pode se ressentir e se frustrar por não receber mostras de bem-querer da mesma proporção. De outro, essa pessoa se sentir no comando daquele relacionamento. 

É exatamente o desejo de domínio do outro o objetivo costumeiro por trás do “love bombing”, examina Marques. “Por isso, embora aconteça em todas as configurações relacionais e todos possam ser vítimas, a estratégia é mais comum nas relações heterossexuais, sendo que, em geral, somos nós, homens, que aparecemos nesse lugar de manipulador”, salienta o psicólogo, indicando que o fenômeno é um desdobramento do desejo de controle masculino. 

“É algo que está introjetado em nossa sociedade, que vê o homem como o sujeito ativo e a mulher como o sujeito passivo. O que precisamos aprender é que uma relação saudável não é pautada pela dominação do outro, mas, sim, pela partilha com o outro”, garante. 

Marques também atribui o recorte de gênero a uma dificuldade dos homens de lidar com suas emoções. “Por isso, quando estamos frente a uma situação adversa, podemos pensar que será mais seguro nos retirar do que resolver aquela questão, voltando quando o problema tiver ‘desaparecido’. Mas, ao fazer isso, ignoramos que podemos estar causando mal ao outro e sendo afetivamente irresponsáveis”, analisa. 

Disfunções 

Para além do desejo de manipulação, o “love bombing” pode revelar que o sujeito demasiadamente engajado em uma relação que nem sequer foi estabelecida precisa de ajuda. “Esse tipo de iniciativa pode demonstrar, por exemplo, um quadro de problemas com a autoestima e de transtorno de ansiedade motivado por um medo excessivo de perder o outro”, expõe Telma Cunha. Ela acrescenta que a atitude aponta para um potencial egocentrismo, uma vez que essas demonstrações exageradas podem ter objetivo de chamar a atenção do outro para si mesmo. 

Relações 'líquidas' 

Nas dinâmicas das relações da contemporaneidade, é recorrente a menção às chamadas “relações líquidas”. De maneira resumida, esse conceito, elaborado pelo filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman, diz de um tipo de sociabilidade muito próximo ao dispensado a bens de consumo, em que as interações são mantidas enquanto parecem satisfatórias, sendo substituídas diante da promessa de outra dinâmica que traga mais satisfação. 

À primeira vista, parece evidente que este seja um cenário fértil para que o “love bombing” germine. Mas não é bem assim. João Luiz Marques destaca que, nas relações líquidas, o sujeito pode estabelecer acordos claros, sem fazer um grande investimento em termos de demonstração de afeto – que é a principal característica desse bombardeio de amor. 

Atenção aos sinais 

“O apaixonamento pode acontecer de forma rápida, e cada um tem seu modo de demonstrar. A questão é que o amor é uma construção. Então, se a pessoa está te amando muito cedo, há muitas chances de ter algo errado nessa história. E mesmo que ela não queira te manipular, ela pode estar vivendo uma situação de carência e construindo uma relação de dependência afetiva. Nesses casos, a dinâmica também não será saudável, porque ninguém conseguirá suprir essa demanda, que é da pessoa e que ela tenta suprir a partir desse investimento no outro”, analisa João Luiz Marques. 

“O mais importante, para evitar esse tipo de situação, é desenvolver autoestima e autoconhecimento para não cair nesse tipo de golpe afetivo. Só assim seremos capazes de construir um sistema em que teremos condições de escapar de situações que nos fazem mal e entender que não vale a pena ir atrás de alguém cujo sentimento seja tão volátil”, aconselha.