Todas as respostas para entender o funcionamento da mente e as causas do sofrimento humano, até a primeira metade do século XX, eram conseguidas após inúmeras sessões de análise diante de um especialista que, munido dos ensinamentos do famoso psicanalista austríaco Sigmund Freud, interpretava esses dilemas a partir do pressuposto básico de que tudo estava escondido no inconsciente do próprio paciente.
O clichê “Freud explica”, porém, vem perdendo força diante dos avanços da neurociência – o estudo científico do sistema nervoso, conforme disse à “Folha de S.Paulo” o neurocientista Ivan Izquierdo. Para ele, a psicanálise foi superada pela neurociência. “É coisa de quando não tínhamos condições de fazer testes, ver o que acontecia no cérebro”, questionou.
Para O TEMPO, Izquierdo – que há mais de 50 anos se dedica exclusivamente à neurociência – disse que a queda da influência da psicanálise não está em debate, mas é o número dos que a praticam e dos pacientes que caiu drasticamente nos últimos 60 anos.
Participante frequente dos congressos da Sociedade Brasileira de Psiquiatria e da Sociedade para o Estudo do Cérebro, Emoções e Comportamento, ele diz que há pelo menos dez anos não se lembra de ter visto ou ouvido nenhum trabalho ou palestra sobre psicanálise. “Os ‘approaches’ (abordagens) dominantes são a clínica e a neurociência. A primeira inclui vários tipos de terapia cognitiva e comportamental, mas já não mais psicanálise”, conclui.
Atualmente, o debate ganhou fôlego. Para outros especialistas, como neurologistas e estudiosos da mente, que contestam a validade atual da psicanálise como tratamento clínico, a falta de solidez científica faz com que as obras de Freud atualmente se limitem à ‘boa literatura’, e portanto, tenham um efeito placebo. Para esses profissionais, o motivo de as pessoas deprimidas se sentirem mal não é a perda das primeiras ligações sentimentais da infância, mas sim um desarranjo químico de seu cérebro.
A presidente da Associação Mineira de Psicanálise, Gisele Parreira, questiona a tese. Para ela, o grau de angústia existencial é o que mantém os consultórios lotados. “As pessoas estão imensamente solitárias, sem poder serem ouvidas, sem espaço para poder falar de si, e nenhum remédio é capaz de atender essa demanda. A medicação se limita ao sintoma, e não à cura da causa do que produz a desarmonia, o conflito. Além disso, a indústria farmacêutica é a que mais tem interesse em sustentar o sofrimento humano”, rebate.
A psicanálise trabalha a cura pela palavra, pela associação livre, explica Gisele. “Ao associar, a pessoa sai do córtex racional e vai aprofundando em outros espaços neurológicos mais profundos, mais inconscientes, e vai achando dentro de si muitas conexões que ela jamais iria fazer se não fosse por esse processo. Isso começa a dar a ela novas percepções de si mesma”, diz.
Autor do livro “Psicanálise Interminável ou com Fim Possível?”, o professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Theodor Lowenkron acredita que cada prática tem as suas limitações, e há espaço para os pacientes e os profissionais que valorizam mais a dimensão biológica e para os que valorizam a psicossocial.
“Esse é um ponto de vista preconceituoso. O ser humano se privilegiou dos avanços da neurociência de maneira indiscutível, e esses avanços não excluem a contribuição das descobertas freudianas. Podem ser complementares”, diz.
Especialistas podem associar as duas práticas, mas decisão deve ser do paciente
Essencialmente, a psicanálise nunca trabalhou com nenhum tipo de medicação, mas, segundo a presidente da Associação Mineira de Psicanálise, Gisele Parreira, médicos psiquiatras que também atuam como psicanalistas podem trabalhar associando os dois métodos.
A formação de um psicanalista pode ser feita por pessoas de qualquer área do conhecimento, desde que tenha formação superior. “Recebemos pessoas de todas as áreas: advogados, economistas, filósofos, matemáticos, todas as pessoas que se interessem em ser terapeutas psicanalistas”, conta.
Os cursos com turmas de até 15 pessoas acontecem a cada três anos. “A formação do analista é um tripé: teoria, a própria análise pessoal do aluno e, depois, o atendimento sob supervisão”, explica. Para o psicólogo Gabriel Puopolo, a decisão sobre qual método usar deve ser do paciente. “Naturalmente, em alguns casos, pode haver indicações, mas, de preferência, cabe ao paciente decidir a abordagem com a qual ele mais se identifica”, diz. (LM)
Frases
“Os neurocientistas não interpretam sonhos. Examinam e estudam suas relações com estruturas cerebrais e sistemas neuroquímicos, a localização e natureza das memórias implícitas (que Freud chamava de inconsciente ou subconsciente).” Ivan Izquierdo, neurocientista
“Observo uma intenção de se fazer crer que o tratamento medicamentoso isolado seria suficiente. Isso é alimentado por características de nossa cultura atual, que prega a busca por resultados rápidos.” Gabriel Puopolo, psicólogo