Esotérico

O exemplo daquele que tripudiou dos pensamentos limitantes

Nem mesmo a paralisia cerebral e o preconceito abalaram sua resiliência


Publicado em 28 de julho de 2020 | 03:00
 
 
 
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O vitimismo não faz parte do repertório nem da vida do virginiano Emílio Figueira, 50, paulistano, que sofreu uma asfixia durante o parto e adquiriu paralisia cerebral, com sequelas na fala e nos movimentos. As dificuldades foram incontáveis, assim como o preconceito e a discriminação. Mas nada disso ofuscou a luz interna e a fé de Figueira, que, mesmo com sua deficiência motora, vislumbrou um mundo de possibilidades para sua vida e permitiu se descobrir e se reinventar em vários ofícios e artes.

Ele tem três graduações (jornalismo, psicologia e teologia), cinco pós-graduações e dois doutorados, um em psicanálise e outro em teologia, e ainda mais de 70 livros e 98 artigos científicos publicados. Além disso, desde a década de 80, mantém incansável militância a favor das pessoas com deficiência.

Figueira começou como tipógrafo, enveredou pelo jornalismo, estudou artes plásticas e expôs seus trabalhos, passou pela psicologia e pela teologia, pelo cinema, teatro, foi roteirista e escritor e percorreu a seara da educação inclusiva.

“Sei que algumas coisas que faço, produzo ou escrevo podem apresentar erros. Só que o feito é melhor que o perfeito escondido em uma gaveta. Sempre estarei em busca de resultados, e não de reconhecimentos acadêmicos ou eruditos. E com os meus passos dentro das minhas possibilidades, com meus erros e acertos, continuarei fazendo a minha parte para uma escola e uma sociedade inclusiva”, comenta o multiartista.

Prestes a completar 51 anos, no dia 9 de setembro, Figueira acaba de lançar seu livro de memórias “O Caso do Tipógrafo”, em que narra de forma descontraída suas construções artísticas, superações e motivações pessoais, tendo como pano de fundo os conceitos de inclusão social, educação inclusiva e sua visão dos efeitos positivos de se ter uma deficiência.

Verdadeiro legado à inclusão brasileira, a obra é dividida em sete partes. O autor revela desde a exclusão que sofreu durante a ditadura militar até suas principais experiências pessoais e acadêmicas. Figueira comenta como é o envelhecimento de pessoas com deficiência em um país que quase nada oferece a esse grupo na terceira idade.

“Gosto de fazer pirraça aos meus pensamentos limitantes e desde cedo descobri que se, não lutasse pelos seus objetivos de vida, ninguém iria lutar por mim. Tenho consciência de que cada pessoa é responsável por construir sua própria história. Que não devemos esperar pelos outros, mesmo porque eles também estão construindo suas histórias pessoais. O estímulo familiar desde pequeno e a determinação pautaram o que sou hoje”, ressalta o escritor.

Após 30 anos de lutas pela inclusão social, Figueira analisa as conquistas. “Hoje as informações e serviços voltados para as pessoas com deficiência se multiplicaram e ajudaram a normalizar nossa imagem na sociedade, o que diminui bastante o preconceito. Não podemos mudar os preconceitos, mas podemos criar novos conceitos para substituí-los. Dentro da inclusão social, avançamos muito e ainda temos muito por conquistar. Estamos ganhando rosto e voz na sociedade atual”.

Teólogo independente e um cristão sem bandeira

A relação de Emílio Figueira com Deus sempre foi boa. “Já fui de frequentar muitas igrejas, tanto que tenho até doutorado em teologia. Foi aí que conheci mais sobre o comportamento humano. Hoje me considero um teólogo independente, um cristão sem bandeira. Defendo acima de tudo o amor ao próximo e a caridade acima de qualquer dogma religioso. A concepção, o amor e a confiança que tenho em Deus são imensos. Eu não O vejo como o meu Senhor, mas como meu Pai. Ele nunca me deixou sem respostas e soluções, mesmo que elas, às vezes, contrariassem meus desejos”, diz.

O escritor sente que foi escolhido por Deus para fazer coisas diferentes. “Ter limitações pode ser um fator essencial para que possamos desenvolver um olhar especial para enxergar e amar de outra maneira nossos semelhantes”, argumenta. (AED)

A opção difícil por lutar e negar a frustração

A mensagem do livro “O Caso do Tipógrafo” é clara. “Existem dois mundos, o ideal, sobre como gostaríamos que as coisas e as pessoas fossem, e o mundo real, o verdadeiro, mas do qual fugimos muitas vezes. Tentamos evitá-lo por não estar de acordo com nossos desejos. Quem vive no mundo ideal gera muito sofrimento psíquico para si e sofre pelas expectativas não realizadas”, observa Emílio Figueira.

Já quem vive no mundo real, diz ele, “se descobre como ser humano, acha pontos de equilíbrio, aprende a lidar com suas frustrações e ansiedades, descobrindo o quanto esse universo é muito mais fascinante em possibilidades e muito mais leve de se viver. Esta é filosofia de vida: se uma pessoa nasce ou adquire uma deficiência, tem alguma dificuldade ou desilusão ao longo da vida, será algo que ninguém poderá mudar. Mas o importante mesmo será o caminho que essa pessoa escolher. Ela pode se entregar e passar a vida se lamentando e se escondendo ou reagir, buscando uma vida cheia de possibilidades”, finaliza Figueira. (AED)

 Um legado digitando com um só dedo em seu quarto

“Emílio percorreu o caminho da educação inclusiva, da psicologia, de uma ampla formação em teatro, pintura, artes, cultura, de uma maneira tão clara, coesa e natural que faz com que a gente pense: poxa vida, como eu não consigo fazer as coisas que ele faz? A resposta é que ele tem todos esses méritos porque ele é quem é.

Mesmo com as dificuldades que tem, conseguiu vencer todas as barreiras de preconceito e que apareceram pela frente. Sua trajetória é o legado discreto de uma pessoa que superou sua própria deficiência, leva conhecimento desmistificando preconceitos, abre caminhos para seus pares em várias frentes sociais e colabora para uma escola realmente para todos, silenciosamente, em seu quarto, digitando com um só dedo!”

Deise Tomazin Barbosa

Assessora pedagógica da Secretaria de Educação de São Paulo

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