Comportamento

Presença virtual se tornou um pré-requisito, enquanto ficar offline, um luxo

Para especialistas, expectativa por constante disponibilidade põe em xeque a ideia de descanso e contribui para o desenvolvimento de transtornos


Publicado em 23 de fevereiro de 2021 | 03:26
 
 
 
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“Status hoje é não ter celular. Não quero esse chefe mandando na minha vida”. A frase, anterior à pandemia de Covid-19, é de um dos mais celebrados pensadores da contemporaneidade, o professor israelense de história Yuval Noah Harari. Em entrevista ao programa “Roda Vida”, da TV Cultura, em novembro de 2019, o autor de best-sellers internacionais como “Uma Breve História da Humanidade” e “Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã” reconheceu que não possuir um smartphone é um luxo para poucos. Contudo, apesar de poder fazer essa opção, a verdade é que nem ele próprio pôde escapar a uma lógica sociocultural em que estar online é cada vez mais um pré-requisito. No caso de Harari, o trabalho virtual acaba apenas sendo transferido para o marido dele, Itzik Yahav. 

Meses após a entrevista, o mundo enfrentaria a maior crise sanitária já vivenciada em um século, que logo reverberou em uma aceleração na já proeminente tendência de virtualização das relações humanas. Dessa forma, interações mediadas pelas redes sociais e por aplicativos de conversas tornaram-se ainda mais preponderantes para um grande número de pessoas – sobretudo no Brasil, que em 2018 já aparecia entre cinco países que mais gastam tempo frente às telas, conforme relatório Estado de Serviços Móveis, elaborado pela consultoria especializada em dados sobre aplicativos para dispositivos móveis App Annie. 

E se nem mesmo quem reivindicava para si o privilégio de se abster de uma rotina hiperconectada conseguia se isolar completamente desse universo, mesmo antes da pandemia, o que dizer dos impactos dessa realidade para larga fatia da população, que não pode se dar ao luxo de estar offline?  

Antes de se deter sobre a questão, Carlos D’Andréa, professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pondera que esse debate não é tão universal quanto pode parecer aos habituais leitores de jornais e portais de notícias. Basta lembrar que uma em cada quatro pessoas no Brasil não tem acesso à internet. Em números totais, são cerca de 46 milhões de brasileiros que não acessam a rede, como indicou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad Contínua TIC) 2018, divulgada no ano passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ele também sublinha como as ferramentas digitais trazem facilidades e proporcionam acesso à cultura, à educação, ao entretenimento e a uma diversidade ampla de informações.

Feita a contextualização, D’Andréa admite que “é dramática essa situação em que somos cobrados a estar disponíveis o maior tempo possível”. O doutor em estudos linguísticos lembra que, por décadas, uma utopia cercou a ideia da conectividade, dando conta de que a tecnologia aumentaria nossa produtividade, eliminando etapas desnecessárias, como deslocamentos e outras burocracias, e isso resultaria em mais tempo livre, possibilitando que tivéssemos que dedicar menos tempo ao trabalho. Algo que, evidentemente, não se concretizou. 

“Para um número muito significativo de pessoas, ficar offline se tornou um luxo”, resume. Ele lembra, por exemplo, a transição do regime de trabalho presencial para o remoto, dinâmica que também foi acelerada pelo surgimento do novo coronavírus. “A princípio, é esperado que esses trabalhadores estejam disponíveis para serem demandados o tempo inteiro, a qualquer hora”, cita. Mesmo quem busca um emprego se vê pressionado a estar presente em mídias dedicadas à esfera profissional ou, ao menos, a manter contas ativas em serviços de conversas, dado que essa disponibilidade para a interlocução virtual já é esperada pelos empregadores. 

Em relação a prestadores de serviços e pequenos produtores autônomos, há uma dependência em relação à presença em aplicativos de troca de mensagens, como o WhatsApp, e em redes sociais, como o Instagram. “Aqui também persiste uma lógica de ter que atender ao cliente a qualquer momento, mesmo que seja um final de semana à noite”, pontua, lembrando que, para se fazerem presentes nessas plataformas, muitas pessoas se percebem condicionadas a manter um ritmo de publicações, pois os algoritmos tendem a valorizar perfis que fazem postagens com regularidade. 

Ócio em xeque

Para além da esfera do trabalho, a constante presença online ainda põe em xeque a lógica do descanso e do ócio. “Agora a gente sempre tem algo a fazer”, pontua Carlos D'Andréa, avaliando que existem uma ideia de produtividade e uma cobrança por desempenho que fazem com que até momentos de lazer se tornem produtivos em algum sentido. “São efeitos disso uma fadiga generalizada e um cansaço muito grande. Estamos saturados desse modelo, mas, ao mesmo tempo, estamos enlaçados por ele, sendo muito difícil ficar à parte”, conclui.

Apontamentos semelhantes já foram pelo psiquiatra Renato Araújo em entrevista a O TEMPO sobre como períodos de férias são benéficas para a saúde e para a manutenção da produtividade.

“A sociedade contemporânea está muito ligada ao desempenho. Até nas férias é esperado que se tenha uma performance, curtindo ao máximo, fazendo o máximo de coisas possíveis. Passei férias com minha esposa em um resort e, em um dia, resolvemos fazer um passeio de barco. Lá conhecemos uma outra pessoa que já tinha feito todos os pacotes disponíveis. Ela acreditava que não estaria aproveitando a viagem se tivesse feito tudo. Mas não é bem por aí. Estar em férias depende mais do seu estado de espírito do que de onde está”, criticou Araújo.

O tema, aliás, é dissecado pelo filósofo sul coreano Byung-Chul Han, autor de livros como “Sociedade do Cansaço”. Para ele, “vive-se com a angústia de não estar fazendo tudo o que poderia ser feito”.

Transtornos de um tempo sem pausas 

A psicóloga Bianca Panvequi observa que alguns traços de comportamento um tanto problemáticos, que têm se tornado mais comuns nas últimas décadas, parecem estar associados ao advento das novas tecnologias. “Existe uma cobrança excessiva de se estar sempre perfeito. A vida do outro, nas redes sociais, parece irretocável, porque é editada para soar assim. Isso vai se refletir em um aumento do perfeccionismo (que é um entrave ao bem-estar)”, explica. O narcisismo, diz, também parece estimulado pelo constante convite à exibição. E o fato de tudo estar a um toque ainda é um fator que tende a reduzir a nossa tolerância à frustração. Além do quê, como aponta Carlos D’Andréa, a sensação de que é preciso estar sempre disponível pode acarretar diversos distúrbios, como a síndrome do pânico e o burnout, que podem se tornar ainda mais disseminados em função da pandemia de Covid-19

“Tirar um tempo para si exige, necessariamente, ficar offline”, crava a terapeuta integrativa. Bianca assinala que a desconexão é importante até mesmo para que se consiga filtrar o que é real do que é editado e para que se percebam sinais do corpo. “Sem dúvida, cobranças excessivas e a expectativa de ser visto o tempo inteiro geram sensações complexas em nós. Observe que, quando ficamos muito tempo recebendo estímulos, acabamos deixando de perceber algumas sensações, que são apagadas por essas constantes descargas de ansiedade. É como se, cada vez mais, a gente ficasse insensível às nossas próprias emoções. Daí a importância de nos desligarmos”, analisa.

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Para aqueles que se percebem online em tempo integral, a psicóloga sugere a inserção de uma rotina offline lenta e gradual. “Podemos, por exemplo, tentar passar a hora do almoço longe do celular. Se vamos fazer um exercício físico, podemos optar por colocar o telefone no modo avião. E, idealmente, podemos deixar de levar a tecnologia para a cama na hora de dormir”, aconselha. 

O direito à desconexão 

Professora de direito trabalhista na UFMG, Daniela Muradas acredita que, à medida que o regime de home office se tornou mais comum, mais urgente passou a ser a regulamentação dessa modalidade de trabalho, que é hoje uma realidade para aproximadamente 11,7% dos brasileiros, cerca de 8,4 milhões de pessoas, conforme mostra pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgada em setembro de 2020 a partir de dados do IBGE. Nesse sentido, uma pauta em relevo é o direito à desconexão. 

“A Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontou que a tendência é que o trabalhador, quando presta serviços virtualmente, fique em disponibilidade plena, a todo momento, nos sete dias da semana. Esta é uma tendência mundial. E é algo que anula as garantias humanas conquistadas ao longo da história, como a jornada diária de oito horas e a semanal de 44 horas”, critica. “É um regime que acaba impondo excesso de trabalho e, às vezes, leva ao desrespeito de pausas necessárias. No Brasil, nas atividades urbanas, o intervalo entre jornadas é de 11 horas, o que acaba sendo ignorado, porque o trabalhador parece estar o tempo todo recebendo demandas por meio de mecanismos como o WhatsApp”, situa. 

Vice-presidente da Associação Latino-Americana de Advogados Trabalhistas, ela assevera que já há no país decisões judiciais que apontam que o sujeito não pode ser impedido de ter outras vivências – como na família e na comunidade –, sendo reduzido única e exclusivamente a um sujeito que se volta ao trabalho. 

“Precisamos de sistemas ou mecanismos para criar segurança para o trabalhador que está inserido nessa lógica virtual”, comenta Daniela, que lidera uma pesquisa conduzida por estudiosos da UFMG e da Universidade de Sorbonne, de Paris, sobre direito à desconexão. Ela cita que a vizinha Argentina, por exemplo, já regulamentou o teletrabalho. “Por lá, ficou estabelecido que todos têm direito à jornada de trabalho e que, quando estiver em regime domiciliar, deve haver o direito a pautas de cuidado. Isto é, além dos intervalos para se alimentar, a pessoa pode fazer pausas para atender as demandas dos filhos ou de idosos acamados, por exemplo”, explica. No Brasil, entretanto, esse debate ainda engatinha.

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