É casado e tem filhos?
Oficialmente sim, mas moro sozinho há 8 anos; tenho uma filha de 24 anos.
Como era a situação na época em que escreveu o livro, tanto de enfrentamento da doença, preconceitos como em relação aos tratamentos?
Diagnostiquei a síndrome em 1998, dois anos depois do advento do coquetel antirretroviral, que ocorreu em 1996. Até 1996, o tratamento mais eficaz era feito com o AZT, o que não resolvia muito. A partir desse ano, começou-se a conviver com a Aids, ou seja, ela virou uma doença crônica, pois o coquetel de fato resolveu o problema mais grave, o de a Aids ser considerada uma “sentença de morte” para quem a tinha.
No meu caso, sempre enfrentei com coragem, mas o fato de já haver o coquetel foi fundamental. Por mais que o coquetel seja eficaz, nem sempre a coragem é o suficiente. Quanto ao preconceito, era mais explícito, diferentemente de hoje, que é dissimulado. Mas nunca deixou de existir. O livro foi uma expressão dessa coragem. Expor a doença em um relato autobiográfico e assumi-la para o mundo em programas de tevê de grande audiência, como ocorreu comigo, foi uma forma de enfrentar a síndrome de frente e também uma terapia. Como, 15 anos depois, estou vivo, e bem, penso que essa postura foi bem sucedida.
Como foi ao longo desses anos?
Costumo dizer que minha vida se divide entre antes do HIV e depois do HIV. E, curiosamente, depois do diagnóstico da síndrome vivi os anos mais interessantes. Como se o fato de viver com a morte à espreita me fizesse ir com mais gana para a vida. Depois de 1998, escrevi seis livros, fiz uma graduação e duas pós-graduações. Neste ano de 2013, tive a felicidade de ver minha filha se formar e estar bem encaminhada profissionalmente.
O modo como a ciência e a sociedade lidaram com a Aids nessas últimas décadas mudou radicalmente?
Sou uma pessoa racional, que acredita na ciência. O que tenho visto é a ciência cumprir seu papel de procurar amenizar ou erradicar certos males da existência humana, e a Aids é um desses males. Se formos comparar o contexto dos anos 1980 com o de hoje, houve uma evolução extraordinária no caso da Aids. Outra coisa, porém, é o que a sociedade e os governos fazem com o que a ciência descobre.
Há governos que ainda desconfiam da eficácia da medicação antiaids e a restringe. Outros simplesmente a ignoram, como ocorre na África. E ainda temos de lidar com a visão arcaica da Igreja católica, que vê com maus olhos o uso da camisinha, e a visão atrasada das correntes evangélicas, uma gente fanática e obscurantista que infelizmente cada vez mais influencia na política e nas políticas públicas em questões de saúde e de comportamento. Apesar desses entraves, a evolução tanto no critério cientifico quanto no debate sobre o assunto são bastante satisfatórios.
Considera que as pessoas estão mais conscientes?
A Aids faz parte da agenda da mídia, a própria Aids ainda é sinônimo de doença mortal, apesar de o coquetel tê-la transformado em doença crônica. Portanto essa pecha que a Aids ainda tem de doença ligada à morte, à promiscuidade, faz com que se tome cuidado com a possibilidade de se contaminar. Mas por outro lado há muita gente para quem o grau de qualidade de vida está muito abaixo de qualquer parâmetro e que, por isso, correr o risco de pegar Aids não é o mais preocupante. Hoje no Brasil, segundo as estatísticas, morrem 2.700 pessoas em decorrência da Aids. Se formos ver, não é pouca gente. Aliás, é muita gente. Sinal de que há muita gente ainda para quem pegar Aids ou não não é pior do que não ter emprego ou não ter uma casa digna para morar. A Aids faz parte de uma conjuntura.
Como a Aids era tratada pela imprensa na época em que você contraiu a doença?
No fim dos anos 1990, a Aids era um assunto mais debatido do que hoje. O próprio governo FHC, com toda a crítica que se possa fazer a ele, tratava a Aids como assunto de primeira importância – tanto que aquele governo foi considerado pelos principais órgãos internacionais voltados para a saúde como modelo mundial de tratamento da Aids. Hoje é comum ouvir-se que estão faltando medicamentos. A própria imprensa não dá o mesmo destaque, talvez porque já não morram celebridades como há vinte, quinze anos. Mas quando se constata que, ainda assim, morrem 2.700 pessoas por ano no país em decorrência da síndrome, a ênfase na mídia deveria ser maior.
O SUS (Sistema Único de Saúde) sempre custeou os medicamentos?
Sim, desde os anos 90. Naqueles primeiros anos, como disse, o Brasil foi considerado modelo mundial no tratamento da Aids. Hoje o Ministério da Saúde continua distribuindo a medicação, mas a qualidade do atendimento caiu muito. Não por culpa dos funcionários, que são muito abnegados, mas em razão das próprias políticas voltadas para a Aids, que não mais como foi nos anos 1990. Ainda assim, seria uma heresia reclamar, pois a qualidade do tratamento da Aids ainda está acima da média do tratamento de outras doenças (como o câncer, por exemplo) e do tratamento em geral dispensado à população.
Suas expectativas e planos de vida mudaram nos últimos 20 anos?
Meu plano de vida sempre foi estar bem para acompanhar o desenvolvimento da minha filha e das pessoas que amo e para realizar meus projetos pessoais. Claro que tudo de uma forma digna. Agora, que cheguei aos 50 anos, penso que estar vivo, nesse sentido, é uma vitória. Fiz aquilo de que sempre gostei: escrevi livros, estudei, curti os meus próximos, acompanhei minha filha em suas conquistas, namorei, fiz amigos bacanas. Não preciso de muito mais do que isso.
Como é a sua vida agora?
Minha rotina é simples: trabalhar, o que envolve escrever e ler o tempo todo, curtir a família e os amigos e coisas bacanas como cinema, futebol, teatro, música, literatura. Tomo 11 comprimidos por dia, seis de manhã e cinco à tarde, mas é só nesse momento que lembro que tenho o hiv correndo no sangue. No resto do tempo, é como se a síndrome não existisse.
Por que "H" é o apelido "carinhoso" que você deu ao vírus?
Em 1998 e 1999 eu já tinha passado por todo o calvário da doença: emagrecimento rápido, febres diárias, gânglios, anemia severa, tuberculose, internação, sete meses de licença médica. Naquele período achei que não fosse passar do ano de 1998. No ano seguinte, 1999, senti uma vontade muito forte de compartilhar aquela experiência com as pessoas. Era uma experiência forte que envolvia dois tabus da sociedade: sexualidade e morte. Como já escrevia, resolvi escrever um relato, que resultou no livro “Meu caro H”.
Mas não queria escrever um livro chato, falando só de coisas ruins, nem queria que o livro fosse autoindulgente, no qual eu me lamentasse o tempo todo diante do ocorrido, me colocando no papel de vítima. Apesar de falar sobre a experiência com uma doença letal como a Aids, queria que tivesse muito humor. E foi o que fiz. O apelido ao vírus é apenas uma parte desse bom humor que perpassa a obra. O comentário mais comum que ouvi ao longo desses anos foi: eu ri e chorei muito com o seu livro. Ouvir isso me deixava e ainda me deixa muito gratificado.
Hoje, quais são as principais dificuldades para aderir ao tratamento?
A rotina. Não e fácil tomar a medicação diariamente. Quando você está legal, toma numa boa. Mas tem dia que você está de bode, ou deprimido mesmo, por algum motivo. Levantar da cama para tomar a medicação à noite às vezes é muito penoso. Nisso muito gente acaba negligenciando a medicação. Eu mesmo estou na minha quarta combinação de medicamentos.
Abandonei as outras três porque negligenciei a um ponto em que a medicação já não fazia mais efeito. Estou, digamos assim, na berlinda. Se negligenciar esta quarta, não haverá no mercado brasileiro uma medicação que faça efeito no meu organismo, pois o vírus resiste a quaisquer outras combinações. Em outras palavras, apesar de estar bem, com a carga viral indetectável e o CD4 em números satisfatórios, ainda convivo com o risco.
Como é a sua rotina para lidar diariamente com a Aids?
Não há uma rotina para lidar com a Aids. Eu apenas vivo cada dia de cada vez. Mas essa é uma atitude diante da vida, não diante da Aids. Estou sempre com projetos novos na mente, sempre entusiasmado com novas possibilidades profissionais, vivo intensamente, junto com minha ex-mulher, que é muito minha amiga, cada conquista profissional da minha filha. Este ano deixei de trabalhar como editor em empresa para trabalhar como autor de livro didático em casa. Essas coisas me realizam e, de certo modo, fazem com que eu nem pense em Aids. A cabeça ajuda muito quando se tem uma síndrome como essa.
Em que momento você costuma contar para uma pessoa sobre isso?
Ultimamente tenho evitado. Quando lancei o “Meu caro H”, apenas minha chefe e minha ex-mulher sabiam. Na época do lançamento, logo de cara fui aos programas da Ana Maria Braga e do Serginho Groissman e ao Erótika MTV. Foi um escândalo entre parentes, amigos e vizinhos. Ninguém sabia. Parentes me ligaram do Paraná achando que eu estivesse à beira da morte. Um vizinho encheu uma camisinha com água e pendurou no portão da minha garagem – um ato moralista, sem dúvida. Mas a recepção foi boa, porque escrever o livro foi um ato de coragem.
Desde que me separei tive três relacionamentos. Sempre havia aquele momento decisivo de “contar” para a pessoa sobre a Aids, antes de haver qualquer contato físico. Decisivo porque uma rejeição pode te deixar muito mal. Mas nunca fui rejeitado. Pelo menos pelas namoradas. Já pelas famílias, é outra questão. Rejeitado fui por algumas dentistas, em 2008. Eu as denunciei para o meu convênio odontológico e elas foram descredenciadas. O convênio me documentou, caso eu quisesse processá-las. Eu não quis.
Em 2011 minha entrada numa grande editora de São Paulo teve dois momentos de preconceito explícito. São dois momentos emblemáticos, porque vindos de pessoas do meio editorial, com formação superior, ou seja, supostamente esclarecidas. Depois de aprovado na entrevista, fiquei em dúvida sobre contar ou não. Resolvi contar. Senti que na hora que minha futura chefe titubeou. E me pediu três dias para consultar o RH e a diretoria.
Eu não disse nada – precisava do emprego –, mas achei aquilo um absurdo. Absurdo porque a lei me faculta contar ou não. Durante os três dias em que aguardei a resposta, uma outra colega, que agora era diretora nessa editora, sem ser consultada, por pura maldade ou por pobreza de espírito, chamou minha chefe para conversar e aconselhou-a a não me contratar, pois, segundo ela, eu dava muitos problemas para a empresa por causa da Aids. Para resumir, fui contratado e fiquei sabendo dessa história dois meses depois.
Confesso que isso me abateu. Eu havia trabalhado 17 anos na Editora Ática e, tirando os sete meses de licença médica em 1998-1999, nunca havia dado problema à empresa. Nunca fui o doente que vivia se ausentando por causa da Aids. E mesmo nessa editora em entrei, provei que o que a diretora havia dito era mentira.
Tive uma performance como a de qualquer outro funcionário que não é soropositivo. O que não me livrou de às vezes, por pura falta de noção, ouvir da minha chefe que eu era “doente”. Relato isso não com ressentimento, porque sei bem que é o “doente” nesses casos, mas para dar uma ideia de que, mesmo num meio com pessoas formadas e com instrução, o preconceito corre solto.
Você acredita que ainda existe um estigma em torno do soropositivo?
Sem dúvida. Os casos que narrei na pergunta anterior são uma prova disso. Só para ficar em mais um caso importante: em 2005, comecei a namorar uma garota. O hiv não foi entrave, porém seus pais, católicos fervorosos, nunca aceitaram. Fui proibido de aparecer na cidade, sob a ameaça do pai de me matar caso eu o fizesse. Tivemos um namoro clandestino por quase cinco anos. E hoje somos amigos. Dessa experiência, resultou o livro Te espero o tempo que for, publicado em 2009 pela Brasiliense.
Não ter mais que esconder que tem o vírus para muitas pessoas é um enorme alívio, ainda hoje acha que é assim?
Acredito que sim. Depois que publiquei o Meu caro H, no ano 2000, recebi centenas de cartas e principalmente de e-mails de pessoas de todo o Brasil que viviam secretamente o drama da Aids ou a possibilidade de estarem contaminadas. Eram pessoas que queriam se comunicar com alguém, pois não podia se abrir com a família. Muitas vezes não diziam nem o nome ou a cidade de onde escrevia, tamanho era o medo. Eu respondia com muito gosto, porque sentia que a comunicação trazia alívio para elas. Ao escrever meu livro, não tive a intenção de fazer dele um livro de autoajuda, mas ele acabou meio que sendo isso também, diante do estigma que cercava e ainda cerca a Aids.
Em um capítulo do seu livro, você conta do seu drama quando descobriu que o vírus fazia parte de sua vida e que, portanto, podia ter transmitido a doença para a esposa e a filha. O que te ajudou a superar isso e poderia ajudar outras pessoas?
Minha esposa não ter se contaminado foi um milagre. Em 1998, eu já tinha dado como líquido e certo que iria morrer, mas o que mais me apavorava era ter contaminado minha mulher, mãe da minha filha, que tinha 9 anos na época. Se nós dois morrêssemos, quem iria cuidar da menina? Ela não queria fazer o teste, pois tinha certeza de que estava contaminada também. Convencida pela minha ex-chefe, ela acabou fazendo o teste. Trouxe o envelope para que eu o abrisse, na cama do hospital onde eu estava internado.
Quando abri e vi que tinha dado negativo, choramos muito abraçados. Hoje, lançando um olhar retrospectivo para tudo isso, não sei dizer exatamente o que fez com que tudo tenha sido superado. Mas acredito que tenha sido uma combinação de tudo um pouco: cabeça legal, apoio da família, decisão de querer viver para cuidar das pessoas que amo, amigos bacanas, cuidados médicos de primeira, medicamentos eficazes, minhas rezas muito do meu jeito. Minha mulher na época nunca me julgou, pelo contrário, desde o primeiro momento se dispôs a cuidar de mim e cuidou. Ela foi fundamental. O Meu caro H foi dedicado a ela.
Com os avanços na sobrevida e no tratamento, você acredita que o cuidado com prevenção diminuiu?
Olha, tenho uma opinião muito própria e talvez polêmica sobre isso. Não se pega Aids somente porque se transa sem camisinha ou se injeta drogas compartilhadas. Comportamento como esse já são o fim da linha. Se pega Aids porque o Brasil ainda é um país de quinto mundo em certos aspectos.
Aids tem muito a ver com crises existenciais, com a vida precária que se vive no Brasil, em que os direitos são negligenciados, em que a miséria material e espiritual ainda é grande. Às vezes é muita coisa contra e se você não tem estrutura, você sucumbe. E o sexo, assim como as drogas, a vida marginal, vira uma válvula de escape. Não estou justificando a Aids, mas acredito que, para muita gente, pegar Aids não é a pior desgraça da vida.
A pior desgraça é não ter emprego, não ter casa para morar, não poder dar uma vida digna para os filhos numa sociedade hipócrita que te olha apenas como pagador de imposto, mão de obra barata e consumidor de lixo cultural e material. A pior desgraça é não ser tratado com respeito.
O governo é hipócrita ao gastar milhões em propaganda para dizer “use camisinha” ou “Aids mata”. Devia cuidar melhor para que as pessoas tivessem seus direitos básicos respeitados. Elas seriam um pouco mais felizes e não precisariam diluir seus dilemas existenciais em atitudes autodestrutivas e como a busca de alívio para as tensões no sexo sem proteção ou no compartilhamento de seringas.
Como é o refazer da vida dentro dessa nova (e assustadora) realidade?
Pelo que ouço dizer, ou pelos contatos que tive, em geral, as pessoas têm duas atitudes diante da Aids: se entregar ou decidir viver. Não julgo quem pensa ou pensou em suicídio. Cada um sabe de si e do seu contexto. Se você é homossexual numa família de evangélicos, certamente você estará em maus lençóis. Há casos de mulheres que foram contaminadas pelos maridos e estes a abandonaram quando a doença veio à tona.
Mas há também muitas histórias de superação, em que o casal ou a família cuidaram da pessoa contaminada e a trouxeram de volta à vida. Eu me enquadro no segundo caso. Minha filha, mesmo sem saber, foi fundamental para que eu me decidisse pela vida. E minha ex mulher, que é minha melhor amiga hoje, foi de uma abnegação rara de ver. Acredito que o meu amor por elas foi que me salvou.
Como mudou sua forma de encarar o vírus após esses anos?
Quando a Aids surgiu, em 1983, viveu-se uma época de terror. Não se via alguém com Aids nas ruas, simplesmente porque as pessoas não duravam um ano. Se não pela ação do vírus, mas pela ação do preconceito social, que por vezes é mais letal do que o próprio vírus.
O vírus HIV é biológico; o preconceito é cultural. Lembro que fiquei muito chocado com as mortes do Freddy Mercury e da Sandra Brea. Mas mesmo sem ainda ter a menor ideia de que um dia eu fosse me relacionar diretamente com a Aids, me tocaram de perto as mortes de três artistas que me eram muito próximos: Cazuza, Caio Fernando Abreu e Renato Russo.
Quando diagnostiquei o hiv, no período de licença médica, ouvi muito Renato Russo e Cazuza e li praticamente a obra inteira do Caio Fernando. Esses três artistas, sua força, sua rebeldia também me ajudaram muito. Nos vários bate-papos em que fui em escolas, para falar do livro, eu sempre começava lendo uma crônica do Caio Fernando. Acho que tudo isso fez com que eu desmistificase o estigma pernicioso do vírus, o visse quase como um companheiro de jornada.
Você acredita que um dia a ciência chegará a uma vacina ou cura?
Acredito. É uma questão de tempo. De pouco tempo. Admiro os cientistas, principalmente aqueles anônimos, que trabalham no silêncio para o bem da humanidade.
O que você gostaria de dizer aos jovens que não conviveram com o impacto inicial da aids?
Acredito que não precise dizer nada em relação à Aids. Eles são muito inteligentes, muito sacados, têm muita informação. Sabem muito mais sobre a Aids do que as gerações anteriores. Mas se tenho de dizer alguma coisa em relação à vida, diria apenas que vivam intensamente, que amem os que lhe são próximos, que curtam as amizades e os amores, que leiam bons livros, assistam bons filmes, ouçam boas músicas, frequentem boas exposições e sejam muito curiosos. Diria, enfim, que a vida é muito bonita.