BRASÍLIA - A Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil) concluiu uma apuração interna e afirmou que houve “delitos e graves desvios de conduta” do general Mauro Lourena Cid, quando ele comandava o escritório de representação do órgão brasileiro, em Miami, nos Estados Unidos.  

A Apex concluiu que a estrutura do órgão do governo brasileiro foi utilizada indevidamente pelo militar “para negociações e presentes de Estado”. 

Lourena Cid é pai do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL) Mauro Cid, e assim como o filho e o ex-presidente da República, também está implicado no caso das joias. 

O relatório da comissão de compliance concluiu ainda que ficou comprovada a presença de Lourena Cid no escritório da ApexBrasil em Miami semanas após a demissão dele no cargo.  

Na avaliação da comissão foi “tempo suficiente para agir conforme seus interesses e afastar qualquer evidência”.  

A ApexBrasil diz ainda que a foto em que o general aparece no reflexo de uma escultura de palmeira foi tirada dentro do escritório de Miami. Ele inclusive usou o celular corporativo para fazer a fotografia.  

“A partir do relatório da Polícia Federal, foi possível concluir que, às 10:39 da manhã de 4 de janeiro de 2023, já demitido, mas ainda nas dependências do escritório da Apex, ele usou o celular funcional para compartilhar fotos das joias e objetos de arte do acervo atribuído ao ex-presidente”, diz o relatório da Apex.  

Segundo relatos obtidos pela comissão da ApexBrasil, o general Lourena Cid “relutou” em devolver o celular e o notebook. Os equipamentos corporativos foram devolvidos, respectivamente, em 17 de janeiro e 7 de fevereiro de 2023. 

Quando da devolução dos aparelhos eletrônicos, a comissão relata que o general descumpriu o procedimento padrão, ao apagar irregularmente os dados dos celulares e do notebook.  

“Em ambos os casos, foi contrariado o procedimento padrão de devolução e apagamento dos dados de equipamentos da ApexBrasil, que devem ter sua integridade atestada e seus dados apagados por uma empresa prestadora de serviços de tecnologia contratada da Agência”. 

Além disso, a ApexBrasil reporta que o militar nunca devolveu o passaporte oficial, e que continuou frequentando o escritório, com “omissão” de alguns funcionários, mesmo sendo destituído do caso. 

“Manteve o crachá de acesso ao prédio até dia 9 de janeiro. Em 6 de janeiro, ainda nas dependências do EA, Lourena Cid recebeu uma senha de wi-fi do escritório em seu e-mail pessoal – já que o corporativo, conforme procedimento de rotina, teve bloqueio automático no dia da exoneração. Esses eventos indicam que o ex-GM do escritório de Miami contou com algum tipo de apoio ou omissão de funcionários”. 

A comissão extraordinária da ApexBrasil para investigar o caso foi criada no dia 2 de abril deste ano, segundo informou o órgão, após reportagens da imprensa e dados de investigações da Polícia Federal. 

Segundo agência, foram ouvidas 16 testemunhas e analisados vários documentos. “Boa parte dessas informações referentes à movimentação de Lourena Cid foram confirmadas e detalhadas por documentos examinados e depoimentos tomados pela Comissão”, informou o órgão. 

 

Inquérito das joias

A conclusão do compliance da ApexBrasil, divulgado nesta sexta-feira (12) pelo órgão, ocorre na mesma semana em que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes retirou o sigilo do inquérito das joias, em que Lourena Cid foi indiciado por lavagem de dinheiro e associação criminosa.  

Além do militar e do filho dele, foram indiciados também Jair Bolsonaro e outros 9 aliados do ex-presidente por indícios de envolvimento em ação criminosa no inquérito das joias sauditas.  

Todos eles estariam envolvidos no desvio e comercialização de presentes dados ao ex-presidente por autoridades estrangeiras em viagens oficiais durante sua passagem pela Presidência da República. Lourena Cid é apontado pela PF como o responsável por negociar as joias e itens de luxo no exterior.   

 

Reunião com o corretor que transportou a mala de joias de Bolsonaro 

O compliance da ApexBrasil colheu provas que o general recebeu em seu gabinete em Miami o corretor que transportou joias de Jair Bolsonaro.  

O exame da agenda oficial de Lourena Cid mostra que, em 1 de agosto de 2022, o militar recebeu em seu gabinete o corretor de imóveis Cristiano Piquet, da Piquet Realty.  

Em janeiro do ano passado, Cristiano Piquet confessou a PF que transportou uma mala de joias de Bolsonaro de Orlando (EUA) para Miami, a fim de entregá-la ao general Lourena Cid. Na mala havia um kit composto por um barco e uma palmeira, que posteriormente seriam oferecidos para venda. 

Visita de Mauro Cid ao escritório de Miami 

Testemunhas também relataram ao compliance da ApexBrasil visitas do general com familiares nas dependências do escritório em Miami, mesmo após a exoneração dele do cargo.  

“Em meados de janeiro, já exonerado, o general esteve no escritório acompanhado da mulher e do filho Mauro Barbosa Cid (principal acusado de operar a venda das joias), tendo ficado trancados em sua antiga sala por algumas horas”, diz trecho da conclusão da comissão extraordinária que analisou a gestão de Lourena Cid à frente da agência.  

A reportagem procurou a defesa de Lourena Cid e de Mauro Cid, mas até o momento não tivemos retorno. O espaço segue aberto.

Conclusões enviadas ao STF, PF e TCU 

A Apex informou que encaminhou o caso à Polícia Federal (PF), ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal de Contas da União (TCU) “para análise das evidências do cometimento de eventuais ilegalidades, entre desvios de função, condutas desidiosas, crime de peculato e outros delitos”. 

 

Resultado das eleições de 2022 

O comportamento do general após os resultados das eleições em 2022 também foi reportado por testemunhas ouvidas pela comissão extraordinária da ApexBrasil. 

“O general Lourena Cid manifestava repetidamente aos funcionários sua convicção de que, mesmo depois de eleito, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tomaria posse e de que ele, Cid, continuaria em seu cargo à frente do EA”. 

Diante disso, a comissão avaliou que a expectativa do general “pode ser lida a partir da ruptura institucional que, na ocasião, articulava-se em setores militares e que culminou na tentativa golpista de 8 de janeiro de 2023”.  

O colegiado reforça essa conclusão, ao lembrar que Lourena Cid visitou o acampamento em frente ao QG do Exército, em Brasília, em 3 de dezembro de 2022. Na ocasião, o militar estava acompanhado de dois funcionários do escritório de Miami, que são muito próximos a ele.  

“Esses funcionários – um deles já demitido da ApexBrasil – são apontados como os servidores mais próximos do general no EA Miami, destacados para prestar serviços pessoais, inclusive na residência de Lourena Cid na cidade, em claro desvio de função”.  

Como foi a gestão de Lourena Cid na ApexBrasil em Miami? 

O relatório do compliance da Apex aponta ainda que gestão do Lourena Cid foi marcada por contratação de funcionário fantasma, conduta “desviante” da atividade fim do escritório de representação em Miami; “afastamento das atividades de negócios” e defesa de “pauta golpista” em relação às eleições de 2022. 

Dessa forma, as oitivas e documentos analisados, revelaram que ele “jamais fez proposições voltadas à exportação ou captação de investimentos. Não solicitou relatórios, tampouco avaliou resultados. Segundo relatos unânimes, o general aprovava todas as propostas levadas a ele, sem aprofundar conteúdos, sugestões ou reparos” 

Os funcionários do escritório da ApexBrasil em Miami reportaram ainda reuniões com empresários e empresas fora da agenda oficial. “Os relatos apontaram indícios de que teriam sido recebidos por ele, fora da agenda oficial e repetidas vezes, empresários e representantes de empresas que jamais passaram a ser clientes da Apex dentro dos processos normais do portfólio do escritório”. 

 

Funcionário fantasma 

O compliance ainda apontou aparelhamento do órgão, com a contratação fraudulenta, de pessoa sem experiência, relação com o órgão e que não comparecia ao escritório. “Médico de Bolsonaro, Ricardo Camarinha, era funcionário fantasma”, diz o documento.  

Segundo relatos colhidos pela comissão,  Camarinha “foi imposto à equipe, contratado pela sede em Brasília e expatriado por meio de instrumentos de excepcionalidade (memorando, portaria e carta oferta) em abril de 2022. O médico não desenvolvia qualquer atividade profissional que mantivesse ligação com o cargo de assessor, e nem frequentava as dependências do escritório. O fato configura uma contratação fraudulenta”. 

Padrão de desídia e disfuncionalidade 

As apurações colheram relatos ainda que revelam a negligência do general Lourena Cid à frente das suas funções no escritório em Miami. “A ausência de instrumentos de controle do trabalho da equipe, de reuniões de avaliação e de relatórios qualitativos, acabou por instaurar no local um padrão de desídia e disfuncionalidade”, conclui a comissão de compliance da Apex.  

Sem regras 

O documento ainda diz que ele não seguia as regras sobre o expediente de trabalho. “Foram identificados, entre outros fatos, a desobediência às Instruções Normativas da Agência sobre home office e teletrabalho, a falta de controle de frequência ou acesso ao escritório. Também a gestão, o relacionamento e a fiscalização sobre empresas brasileiras incubadas no EA Miami foram negligenciados”.