BRASÍLIA - O evento organizado pelo Palácio do Planalto, em memória ao aniversário de dois anos dos episódios ocorridos em 8 de janeiro de 2023, buscava sinalizar a união dos Poderes, mas não conseguiu emplacar a presenças das autoridades. O ato não teve a presença dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso.  

Do lado de fora, cerca de mil pessoas, em sua maioria ligada a partidos de esquerda e movimentos sociais na Praça dos Três Poderes, participaram do "Abraço da Democracia".

Na avaliação da cientista política Deysi Cioccari, “a pouca mobilização popular e uma recepção morna da opinião pública aponta para um problema crucial: a desconexão entre a agenda política e os sentimentos da sociedade”. 
 
“A defesa da democracia é, sem dúvida, um valor universal, mas a falta de engajamento popular pode sugerir que o governo falhou em traduzir esse valor em ações tangíveis e em comunicar de forma eficaz a importância do momento para o cidadão comum. A democracia depende tanto da institucionalidade quanto do envolvimento ativo dos indivíduos. O evento, nesse sentido, pareceu mais uma performance para a elite política do que um esforço para galvanizar a base social”, afirmou. 
  
Por outro lado, o evento conseguiu reunir os comandantes das Forças Armadas. Em seu discurso, Lula evitou o termo “militares legalistas” e agradeceu a presença deles e do ministro da Defesa, José Múcio.  
 
“Quero agradecer o ‘Zé Múcio’, que trouxe os três comandantes das Forças Armadas para mostrar a esse país que é possível a gente construir as Forças Armadas com o propósito de defender a soberania nacional”, ressaltou Lula. 
 
A presença dos comandantes foi considerada como uma importante sinalização, já que a Polícia Federal (PF) identificou a participação de militares, inclusive de altas patentes, entre os membros da "organização criminosa" que planejava impedir a posse de Lula em 2023. Em novembro, no âmbito desse inquérito, a instituição indiciou 40 pessoas - entre elas o ex-presidente Jair Bolsonaro.

‘Ainda estamos aqui’, diz Lula, em seu discurso 

Em outro momento do seu discurso desta quarta-feira, Lula defendeu a democracia com referência direta ao filme "Ainda estou aqui", que mostra os efeitos da ditadura militar na vida da família do ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido após ser levado de casa por agentes do regime.  

“Hoje é dia de dizermos em alto e bom som: ainda estamos aqui. Estamos aqui para dizer que estamos vivos e que a democracia está viva, ao contrário do que planejaram os golpistas de 8 de janeiro de 2023”, afirmou o presidente.  
  
“Hoje estamos aqui para que ninguém seja morto ou desaparecido em razão da causa que defende. Estamos aqui em nome de todas as Marias, Clarices e Eunices”, continuou, em citação a Eunice Paiva, esposa de Rubens, retratada em "Ainda estou aqui". “Hoje é dia de dizermos em alto e bom som: ditadura nunca mais, democracia sempre”, completou.

Discursos cobram punição dos acusados pelos atos de 8 de janeiro  

Enquanto Lula defendeu a punição dos responsáveis pela tentativa de golpe após a eleição de 2022 e pelos ataques aos prédios públicos, familiares de presos e apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro cobraram anistia aos acusados. 
 
“Os responsáveis pelo 8 de janeiro estão investigados e punidos. Ninguém foi ou será preso injustamente. Todos pagarão pelos crimes que cometeram, todos”, disse Lula, durante o evento desta quarta-feira. 
 
“Inclusive os que planejaram o assassinato do presidente e do vice-presidente da República e do presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Terão amplo direito de defesa e terão direito à presunção de inocência”, acrescentou. 
 
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, enviou uma mensagem para ser lida durante a solenidade no Palácio do Planalto. O texto foi apresentado pelo vice-presidente do STF, Edson Fachin, e também defendeu a punição dos réus envolvidos nas manifestações. 
 
“Não devemos ter ilusões. No Brasil e no mundo está sendo insuflada a narrativa falsa de que enfrentar o extremismo e o golpismo, dentro do Estado de Direito, constituiria autoritarismo”, escreveu Barroso. 
  
“É o disfarce dos que não desistiram das aventuras antidemocráticas com violação das regras do jogo e supressão de direitos humanos”, prosseguiu. “Não virão tempos fáceis. Mas, precisamos continuar a resistir”, concluiu o presidente do Supremo, que está no exterior.   
 
Em discurso duro, o ministro Fachin destacou ainda o papel do Judiciário para garantir punições para aqueles que participaram das invasões e dos episódios de depredação dos prédios dos Três Poderes.  

“A violência se coloca fora desse pacto [democrático] e deve ser sancionada de acordo com a nossa legítima Constituição”, declarou. O ministro também refutou críticas de interferência do STF sobre outros Poderes e rejeitou a acusação de que o Judiciário toma para si o protagonismo neste momento de lembrança pelos atos do 8 de janeiro.  
 
“Reafirmo o compromisso do Supremo Tribunal Federal com a independência, harmonia e cooperação entre os Poderes, e com os princípios republicanos e democráticos”, afirmou. “Neste momento solene de construção de nossa memória, e conscientes de que o nosso papel não é o de protagonista, não poderia deixar o Tribunal de se fazer presente”, concluiu. 

Anistia aos condenados pelo 8 de janeiro também volta à discussão

No entanto, o desembargador aposentado Sebastião Coelho da Silva defende a aprovação do projeto de lei em tramitação no Congresso que anistia os condenados pelos atos de 8 de janeiro. Para ele, essa medida seria necessária para a “pacificação do país”. 
 
“Nós já deveríamos ter aprovado a lei da anistia. Para uma pacificação do país, seria necessária a aprovação dessa lei, virar essa página. Mas a comemoração de hoje com a presença dos ministros do Supremo Tribunal Federal, [mostra que] eles são parceiros, cúmplices “, disse, durante live promovida nesta quarta-feira pela Associação dos familiares e Vítimas do 08 de janeiro. 

O projeto de lei da Anistia chegou a ser debatido na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara no ano passado, mas travou depois que o presidente da Casa, Arthur Lira, anunciou, em outubro, a criação de uma comissão especial para análise da proposta. O colegiado ainda não saiu do papel, mas continua sendo uma pauta prioritária para a oposição. 

A cientista política Deysi Cioccari também alerta para “a ênfase na punição dos envolvidos” pelos episódios ocorridos na Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. 

“A ênfase na punição dos envolvidos nos atos antidemocráticos, embora necessária para reafirmar a autoridade do Estado, pode levantar críticas sobre a ausência de estratégias voltadas à educação política e à reconciliação nacional. O filósofo Jacques Derrida nos alerta sobre os perigos de práticas punitivas que, ao focarem exclusivamente no castigo, ignoram a complexidade de reconstruir laços sociais em sociedades polarizadas. A ausência de propostas para engajar a sociedade em um debate amplo e inclusivo sobre democracia demonstra uma lacuna estratégica”, explica.

Obras vandalizadas foram restauradas e reintegradas ao acervo

A programação do Palácio do Planalto começou pela manhã com a reintegração de 21 obras e objetos históricos danificados pelos acontecimentos dos atos de 8 de janeiro de 2023. Entre as peças entregues, estão a obra de arte As Mulatas, de Di Cavalcanti, e o relógio do século XVII presente da França para a Corte Portuguesa. 

Na abertura, a primeira-dama Janja da Silva fez o discurso e afirmou que a memória, representada pela restauração dos itens, é um “antídoto contra tentações autoritárias”. 

"O Palácio do Planalto, onde estamos hoje, foi vítima do ódio que estimula e continua estimulando atos antidemocráticos, falas fascistas e autoritárias. Para isso, a nossa resposta é a união, a solidariedade e o amor", disse Janja. 

“A vontade do povo brasileiro de lutar pelas liberdades democráticas, junto da união das nossas instituições, impediram a perpetração de um golpe de Estado há dois anos. O país não aceita mais o autoritarismo. O que aconteceu nessa praça dos Três Poderes precisa estar na nossa memória e do país como um alerta de que a democracia precisa ser defendida diariamente”. 

Evento no Planalto também teve gafes de Lula 

Ao improvisar em seu discurso no evento em memória aos dois anos dos atos de 8 janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) cometeu uma gafe que desagradou a primeira-dama, Janja da Silva. O petista disse que os amantes seriam "mais apaixonados" do que os maridos. 

“Eu diria que eu sou um amante da democracia. Não sou nem marido, eu sou amante da democracia, porque na maioria das vezes os amantes são mais apaixonados pelas amantes do que pelas mulheres. Eu sou um amante da democracia porque conheço o valor dela”, afirmou Lula durante o evento. 

Ele arrancou algumas risadas na plateia do Palácio do Planalto, mas recebeu um olhar de desaprovação da primeira-dama que estava no palco da solenidade. A fala machista também tem repercutido nas redes sociais. 

O presidente também brincou com o apelido de Xandão do ministro Alexandre de Moraes, STF. “É um apelido que já pegou. Desse apelido você nunca mais vai se libertar. Pode ficar sério, e não adianta ficar nervoso, que ninguém vai parar de te chamar de Xandão", afirmou Lula.  

"Tenho 79 anos, já vivi muito vendo a Suprema Corte brasileira, e nunca conheci um ministro da Suprema Corte que tivesse um apelido, apelido dado pelo povo, chamado Xandão".