Todos os domingos, o sino badala na Igreja de São Francisco de Assis, em São João del-Rei, chamando os fiéis para a missa. Há muito que os sinos – Patrimônio Imaterial de Minas Gerais e do Brasil desde 2009 – se tornaram um produto turístico do Estado. Em São João del-Rei, eles ganharam protagonismo em celebrações religiosas, fazendo da cidade “a terra onde os sinos falam”, como é conhecida.
Pelo menos cinco igrejas de lá mantêm essa tradição viva: além da citada São Francisco (foto abaixo, crédito: m.ffotografia / Divulgaçao), a de Nossa Senhora das Mercês, a de Nossa Senhora do Rosário, a de Nossa Senhora do Carmo e a Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar.
A perpetuação dessa tradição secular tem tanta importância que, no dia 19/7, a Associação das Cidades Históricas de Minas Gerais (ACMG), em parceria com a Prefeitura de Mariana, vai promover a Oficina de Sineiros, no Cineteatro Municipal de Mariana, durante o Festival de Inverno.
Leia mais:
Conheça São João del-Rei, a joia esquecida de Minas
Para ministrar a aula, São João del-Rei emprestará à cidade o conhecimento do professor Samuel Nunes, que, além de sineiro profissional, trabalha na confecção e restauração de sinos. Ele vai ensinar a linguagem dos sinos – como é feito o repique utilizando três instrumentos de tamanhos diferentes. “Vou explicar os toques. Em São João del-Rei, são mais de 30 repiques, cada um com uma função”, salienta.
Nunes reconhece que o sineiro precisa de práticas diárias para ouvir e entender os sons do sino. “O sineiro precisa ter um bom ouvido, porque o som dos sinos está ligado muito à música, à percussão”, conta. Em São João del-Rei, o modo de tocar o sino é único.
“O toque é diferente do de Ouro Preto, Mariana e outras cidades devido a dois fatores: em São João, os sinos giram sobre o próprio eixo, em 360°, e os repiques são mais harmônicos”, explica. Não se trata só de conhecer um conjunto de badaladas, pancadas, repiques e dobres, todos nomeados e com estrutura precisa, mas também de dominar o alto grau de sofisticação e conhecimento na forma de sua execução.
- Os repiques foram criados por sineiros no tempo colonial e preservados na tradição oral. Os toques (muitos deles onomatopeicos) mais conhecidos são Angelus, A Senhora É Morta, Toque de Exéquias, Toque de Cinzas, Toque de Finados. Toque de Passos, Toque de Treva, Glória de Quinta-Feira Santa, Toque da Ressurreição, Toques de Te Deuns, Toque de Rasouras e Procissões, Toques de Incêndio, Toques de Agonia, Toques Fúnebres, Toques Festivos, Toque de Parto, Toque Chamada de Sineiros, Toque de Sacristão, Toque de Posse da Irmandade, Toque das Almas, Toque das Missas, Toque de Nata, Toque de Ano Novo e Toque das Chagas (ou Morte do Senhor).
Para a professora do curso de turismo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Joyce Kimarce, o toque dos sinos (foto abaixo, crédito: Flávio Tavares / O Tempo) tem uma forte influência de matriz cultural africana. “(Os toques) são parecidos com os dos tambores de terreiros de candomblé, nomeados como batucada, batuquinho, terentena e tanquins”, destaca.
Os sinos, a propósito, foram tema da dissertação de mestrado de Joyce na UFMG, nomeada “Entre Festejos e Ofícios: Um Olhar Acerca das Manifestações Culturais do Toque dos Sinos de São João del-Rei (MG)”
No estudo, a professora da UFMG relata que, durante o período colonial, os escravizados eram obrigados não só a trabalhar nas minas de ouro, mas a construir as igrejas, subir com pesados sinos para instalá-los nas torres e tocá-los.
“Os campanários eram locais insalubres e perigosos, não raro, um escravizado era arremessado de lá de cima”, pontua. Após o período da escravização, muitas famílias perpetuaram a tradição.
Curiosidades:
- São três sinos que “conversam” entre si: um pequeno, com tom mais agudo; um médio, que faz uma “pergunta”; e um grande, de tom mais grave, que “responde”;
- A profissão de sineiro sempre foi majoritariamente masculina;
- Do ponto de vista histórico, os toques dos sinos são uma influência da Espanha, e não de Portugal, porém foram “abrasileirados”, resultado de um sincretismo religioso e da identidade africana.
Conservação
Em Minas Gerais, os sinos (foto acima, crédito: Diocese de São João del-Rei / Divulgação) são protagonistas nas festividades. São eles que chamam para missas, velórios, casamentos, batizados, marcação das horas e outras celebrações de interesse coletivo. Com o passar do tempo, eles foram cedendo espaço para caixas de som em algumas cidades ou perdendo a importância, principalmente com a instalação de relógios nas igrejas.
Dos 50 toques existentes, alguns foram suprimidos, como o do natimorto. “Uma coisa importante é que os sineiros mantêm uma relação afetiva, quase devocional, com os sinos. É como se eles tocassem sua alma, seu coração”, destaca Joyce, que define os sinos e seus campanários como elementos de sociabilidade.
Outro fator importante na linguagem dos sinos é a qualidade dos instrumentos. Normalmente, um sino tem corpo todo em bronze e contracorpo de madeira e ferro. A forma e as dimensões também influenciam o som. O badalo pode ser produzido com metal ou madeira, dependendo do efeito sonoro desejado. Já o suporte é a estrutura que sustenta e permite seu balanço.
“Há muita técnica envolvida na confecção de um sino. Há lugares onde o sino não gira, apenas repica”, explica Samuel Nunes, que atualmente restaura três sinos de uma igreja de Entre Rios de Minas. O sineiro lamenta que em cidades como Ouro Preto, por exemplo, muitos sinos se encontram em mau estado de conservação.
Ao montar o dossiê que transformaria a linguagem do toque dos sinos em Patrimônio Imaterial do Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) já alertava para o fato de os sinos estarem sendo substituídos por instrumentos eletrônicos com o aval da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), devido às dificuldades de manutenção. Outro aspecto que levou à proteção desse bem cultural foi o grande número de sinos rachados, sem badalo em igrejas do país ou sem local apropriado para instalação.
"Batalha"
Com um calendário litúrgico extenso, em Minas, cada igreja tem um ou vários sineiros. O atual secretário de Cultura e Turismo de São João del-Rei, Caio Andrade, já exerceu a profissão. Ele afirma que os sanjoanenses que moram no Centro Histórico têm e sempre tiveram uma relação muito especial com os sinos.
- “Em São João del-Rei, um detalhe precioso é que muitas pessoas que se tornam sineiros são ritmistas de escolas de samba. A batida dos sinos se parece muito com toques africanos, como batidas de tambores. Como eu sempre tive uma relação com o Carnaval e com a igreja desde pequeno, cresci participando dessas tradições. E, desde criança, era inevitável ir à torre das igrejas e tocar os sinos”. (Caio Andrade)
Uma das peculiaridades de São João del-Rei é o Combate dos Sinos, protagonizado por três igrejas do Centro Histórico. A “batalha” acontece no quarto domingo da Quaresma, iniciando na sexta-feira anterior à celebração dos Passos. Durante três dias consecutivos (sexta-feira, sábado e domingo), o evento é realizado em horários predeterminados (12h15, 15h e 18h).
Na sexta-feira, o embate envolve as igrejas de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora do Carmo; no sábado, a Igreja de São Francisco e a Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar; e no domingo, as três igrejas. Grupos de sineiros de cada uma badalam os sinos de maneira ritmada, pedindo a devolução das imagens para suas igrejas.
Isso, porque a imagem de Nossa Senhora da Conceição é levada velada da Catedral Basílica para a Igreja do Carmo; enquanto o Senhor dos Passos faz o mesmo trajeto no sentido inverso. No domingo, acontece a Procissão dos Passos.
- “Em cada igreja, o grupo de sineiros bate nove pancadas espaçadas nos sinos maiores. Depois coloca o sino a pino, invertido, e vai fazendo os dobres. Em seguida, vai diminuindo o toque para poder acelerar, fazendo as badaladas ficarem mais rápidas. O reavivar dos sinos dura entre meia hora e 45 minutos, tudo intercalando as três igrejas. Nessa batalha, não há vitoriosos”. (Nilsson dos Santos, foto acima, crédito: Aquivo Pessoal)
De família religiosa, Santos, sineiro da Igreja de São Francisco de Assis por mais de 30 anos, se encantou com os sinos nas missas e procissões. Aos 16 anos, interessou-se pelo ofício e teve como mestre Helvécio, um dos sineiros mais antigos da cidade. “Quando subi pela primeira vez na torre foi um contraste, um choque; a gente imagina uma coisa, e é outra. Os sinos são enormes, pesados. É uma loucura”, conta.
Aos poucos, ele foi descobrindo que a alma dos sinos são os repiques e que cada um dos três forma um conjunto importante. “É tudo balançado manualmente. E, à medida que a gente vai movimentando os sinos, eles vão virando ao contrário”, diz. Além de Santos, a curiosidade pela tradição invadiu a família – um irmão e um tio também são sineiros.
Ouro Preto
Em Ouro Preto, é comum a realização da Sinerata em datas específicas. Ela aconteceu recentemente devido à morte do Papa Francisco e no dia de seu enterro. Às 9h da manhã, todas as igrejas da cidade, como a de Nossa Senhora da Conceição (foto acima, crédito: Flávio Tavares / O Tempo) repicaram o toque fúnebre.
- "Temos também Sinerata no dia das duas padroeiras de Ouro Preto: Nossa Senhora do Pilar, em 8 de julho, quando se comemora também o aniversário da cidade, e em 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora Conceição. Normalmente, os sinos são badados simultaneamente ao meio dia". (Arthur Ramos. presidente da Associação dos Sineiros de Ouro Preto, que reúne cerca de 30 sineiros).
As próximas Sineratas acontecem no dia 12 de outubro, Dia de Nossa Senhora da Aparecida, e no dia 1º de novembro, Dia de Todos os Santos. "Desde 2013, a gente retornou com essa tradição e fica muito bonito, a cidade até para. Só uma igreja tocando já dá um baque no Centro Histórico, imagina todas. É ma manifestação cultural importante de Ouro Preto", acrescenta.
Paracatu
Curiosamente, o sineiro mais antigo de Minas Gerais não é de São João del-Rei, mas de Paracatu, no Noroeste de Minas. Ildeu Novais Pinto (foto acima, crédito: Douglas Fernandes) completou 100 anos no dia 15 de março deste ano.
Servidor federal aposentado, ele conta que já fez de tudo na vida: foi garimpeiro, caminhoneiro, comerciante e funcionário público. Orgulha-se de narrar que ajudou a erradicar a malária no estado e a levar material de construção para erguer a capital federal.
Apesar de todos seus feitos, sua paixão mesmo são os sinos. Há 30 anos, ele se levanta cedo e vai tocar o sino, às 8h, chamando os moradores para a missa das 8h30. Primeiro foi na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, atualmente interditada, e agora na igreja matriz.
Ildeu se intitula “autodidata”, porque ninguém o ensinou a linguagem dos sinos. “Há muitos anos, um belo dia, na Festa de São Benedito, eu olhei para a torre da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, vi o sino e pensei: ‘É a voz de Deus’”, revela.
Leia mais:
Conheça São João del-Rei, a joia esquecida de Minas
Ele subiu os 20 degraus da torre da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e, inspirado por um antigo sineiro da cidade, Gustavinho, bateu no pequeno sino, “Gustavinho bem-bem”, e no grande, “Gustavinho bem-bão”.
Sineiro há três décadas, lúcido e bom de prosa, Ildeu lembra que tocou um sino, compassadamente, para comunicar a morte do papa Francisco e os dois sinos para anunciar o novo papa, Leão XIV. “Bato o sino para mostrar que Deus existe, para provocar o povo a se reunir”.
A paixão de Ildeu pelos sinos é tão grande que ele repassou seu conhecimento à filha, Maria Antônia, 60, e ao neto Davi, 11. “Os dois agora têm condições de ser sineiros, até porque eu não sou eterno”, comenta. Na última semana, levou o bisneto de 2 anos pela primeira vez ao campanário para tocar o sino.
Além de ser sineiro, Ildeu Novais se dedica à pintura e ao artesanato. As mãos ainda são fortes, nunca tremem. Com aulas na Casa Paracatu, aprendeu a produzir peças de arte sacra em madeira e agora ajuda a filha Maria Cláudia em seu ateliê, inclusive restaurando imagens. É a fé em Deus e o encantamento pelos sinos que mantêm o paracatuense vivo e ativo até hoje, ele conta.
Serviço:
O quê: Oficina de Sineiros
Onde: Cineteatro Municipal de Mariana (rua Frei Durão, 22, Mariana)
Quando: 19 de julho, às 14h
Inscrição gratuita pela plataforma Sympla.