Bullying provoca evasão

Por não conseguirem lidar com a vida em abrigos, muitos acolhidos vão embora; em 2015, foram 43

“Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo/E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo”. Em uma tarde de quinta-feira, em dezembro do ano passado, a música “Aquarela”, de Toquinho e Vinicius de Moraes, tomou conta da cozinha do abrigo Casa Tremedal. Aquela era a última vez em que o som do violino de Felipe*, 12, ecoava pela casa. No dia seguinte, o garoto evadiu-se. No lugar, não se usa a palavra fugiu porque os meninos não estão presos e são mantidos no abrigo por uma medida protetiva. Em 2015, 43 adolescentes – 24 homens e 19 mulheres, de 12 a 17 anos – fizeram o mesmo movimento de Felipe e abandonaram os abrigos da capital mineira.

A evasão de Felipe surpreendeu a todos na casa. Dedicado, ele estudava violino diariamente. “Eu gosto muito de música. Via os meninos tocando e pedi aos educadores para me levarem na aula”, contou antes de partir. Ele participava da orquestra de adolescentes do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) desde o início de 2015 – um ano difícil para o garoto. O irmão de que ele gostava foi morto a tiros, a mãe foi presa, e o pai morreu de depressão.

Na semana em que ele deixou o acolhimento, a mãe tinha saído da prisão e ido visitá-lo. Depois disso, Felipe avisou que iria embora. Naquela mesma semana, os outros acolhidos começaram a chamá-lo de “homossexual” – o bullying tem consequências mais graves quando ocorre em um abrigo. Tudo aquilo perturbou Felipe e, na manhã de uma sexta-feira, ele saiu como se fosse para a aula de violino e não voltou. A suspeita é que ele esteja na casa da mãe ou dos irmãos paternos que moram no interior de Minas e já tinham interesse na guarda.

Felipe foi o primeiro dos cinco meninos que evadiram desde quando a reportagem começou a acompanhar o Tremedal, em outubro de 2015. Foi um impacto grande, porque esperávamos a apresentação dele na cantata de Natal do TJMG. Assim que deixou o acolhimento, ele nos deu notícias pelo Facebook e disse que estava bem, mas preferia não contar onde estava. Quando saem do abrigo, os adolescentes se mantêm conectados às redes sociais, postando fotos e vídeos constantemente.

Os educadores do abrigo não podem impedir essa situação. Eles tentam não facilitar, mantendo as portas da casa trancadas, mas os menores não estão presos e, se decidem sair, só resta à unidade comunicar o ocorrido à Justiça. “Temos que ir atrás desse menino. Nós nos baseamos no histórico dele no abrigo. Se estiver com a família que não tem mais a guarda, é feita uma busca e apreensão”, explica Nádia Queiroz, coordenadora do Serviço de Orientação e Fiscalização a Entidades de Acolhimento (Sofes).

Se o adolescente que abandonou quiser voltar para o abrigo, deve ir ao Conselho Tutelar. “Em 2014 e 2015, 41 adolescentes passaram mais de uma vez no conselho. Alguns, quatro vezes. Precisamos trabalhar melhor os casos para acabar com essa reincidência alta”, afirma Denise Magalhães Matos, gerente que está à frente do conselho pela Prefeitura de Belo Horizonte.

Ao sair do abrigo, a volta para o tráfico

Provenientes de comunidades violentas, muitos adolescentes voltam a ter contato com o crime assim que deixam o acolhimento. Pedro*, 13, e Enzo*, 14, abandonaram juntos o abrigo e foram para a casa da avó de Pedro, onde também moram os pais do menino e o irmão – todos envolvidos com o tráfico de drogas. Na semana seguinte, os rapazes postaram no Facebook fotos com cigarros e mensagens relacionadas a gangues. Outro acolhido, Alex*, 15, também abandonou o abrigo para voltar a morar com a avó, onde ele tinha se envolvido com traficantes e foi ameaçado de morte pela perda de um revólver. “Agora tá suave”, disse Alex aos educadores, pois o líder do crime teria permitido sua volta. Bastou chegar à comunidade para ele ter que sair correndo, mas já não poderia retornar ao abrigo ou colocaria todos em risco.

Violência é sinal de defesa e de carência

“Eu esperei ele ir para o quarto, derrubei ele e comecei a bater. Eu ia pegar a tesoura e enfiar na garganta dele, mas soltei, e ele deu umas sete tesouradas nas minhas costas”. Após essa briga com o pai, Gabriel*, 15, foi para o abrigo Casa Tremedal, em 2013, logo que se recuperou das lesões e saiu do hospital. Ainda assim, se pudesse, Gabriel moraria com o progenitor, que perdeu a guarda do filho por causa das frequentes agressões entre ambos.

De toda essa violência que relata, Gabriel herdou um jeito agressivo que alterna com o de um menino carinhoso. Ao ameaçar os outros acolhidos – “vou enfiar a faca”, dizia sempre –, ele mostrava que precisava de atenção. Gabriel já saiu algumas vezes do abrigo. “Eu não sei o que acontece, do nada quero muito agredir. Não me dou bem com os meninos daqui”, disse ao tentar justificar algo que vem do próprio histórico de violência e abandonos.

A mãe dele morreu em 2012, vítima de câncer. As duas irmãs mais velhas alegam que não têm condições de ficar com o caçula. Talvez uma tia o recebesse em casa. Enquanto isso, o adolescente apresenta dificuldades no abrigo. Já chegou a tentar enforcar um dos acolhidos e só parou com a intervenção de um educador. Ansioso, Gabriel quer sair logo da unidade, embora sinta que a vida fora de lá não será das mais fáceis. “Aqui, aprendo a ter regras, mas não gosto de não poder sair à noite”.

* Nomes fictícios