Aos 18 anos, o abrigo é a rua

Institucionalizado por uma década, Paulo da Silva sairia do acolhimento sem emprego e lugar para morar

Sentado no chão da área externa da casa, espaço que alguns adolescentes ocupavam com brincadeiras, Paulo Mateus da Silva passava as tardes envolvido apenas com seu tablet, sem tirar o fone do ouvido ou interagir com quem não estivesse no seu mundo virtual. Foi assim que o conhecemos, em 26 de outubro do ano passado, arredio, de cara fechada, indiferente, nada que pudesse revelar o “Paulinho” carinhoso e comunicativo a quem os educadores do abrigo se referiam no diminutivo. Os temidos 18 anos tinham chegado 20 dias antes como uma sentença, e o futuro se apresentou como um lugar próximo demais.

O governo, como prevê a lei, deu a ele casa, comida e roupa lavada, dos 8 aos 17 anos, mas o aniversário mais indesejado marcava o fim do acolhimento na Casa Tremedal, na região Noroeste de Belo Horizonte. O garoto que apanhava da mãe alcoólatra e foi largado em abrigos por uma década – perdendo completamente o conceito de família – pensava que já tinha passado por tudo de ruim na vida. Até entender que o seu “pior momento”, em suas palavras, seria a saída da instituição onde passou a maior parte da vida. Sentia como se estivesse sendo expulso da própria casa. “A Justiça está pedindo a minha vaga. Não sei para onde eu vou. Estou tipo uma bomba-relógio”, disse, enquanto o suor escorria pela testa.

O fim do ano letivo era o limite para que Paulinho, que cursava o ensino médio, fosse embora. Os técnicos da unidade ainda conseguiram estender a moradia por mais dois meses, até dezembro, na tentativa de ao menos garantir que ele terminasse o ano abrigado, e assim, ganhasse mais tempo para buscar emprego e não ter que sair para o “mundo fora da Casa Tremedal” sem perspectiva de um lugar para morar. Ele não possuía nenhum familiar a quem pudesse recorrer, o que explicava tamanha urgência.

Nas semanas definitivas, porém, em vez de correr atrás de trabalho, Paulinho chegava da aula e, invariavelmente, se agarrava ao tablet, que comprou pouco antes com o dinheiro que ganhou como menor aprendiz. Em uma de nossas tentativas de conversa, ele tirou o fone da orelha e esclareceu o seu isolamento: “Estou saindo do abrigo. Estou muito desanimado, muito mesmo”.

Ele sabia que tinha contribuído para estar nessa situação ao negar que era hora de enfrentar o mundo. Chegou a fazer entrevistas em empresas sem levar documentos e dizer em um cadastro que não queria trabalhar às sextas-feiras. Acreditava que, ao se sabotar, teria uma desculpa para não o “expulsarem” da casa, ignorando que sua vaga tinha que ser passada adiante, inevitavelmente. No dia 10 de dezembro, o prazo foi decretado, deveria ir embora dali uma semana. Paulinho e todos que o rodeavam vivenciaram sete dias de muita incerteza e aflição.

Preparação

Quando não é possível que o menor retorne à família de origem ou vá morar com parentes extensos, a instituição começa a incentivar a autonomia do adolescente para que ele possa sair preparado aos 18 anos. Mas, no final, Paulinho se acomodou. “A gente falava com ele para guardar dinheiro, porque ia precisar quando saísse, mas ele emprestou”, contou a assistente social do Tremedal, Maria Clara Braga.

A inércia era tanta que todos começaram a achar que ele tinha uma “carta na manga” para quando chegasse a hora de deixar o abrigo. Às vésperas da saída, Paulinho passou a se dedicar com mais empenho à busca por emprego, percorrendo o centro da cidade a pé para entregar currículos. “Estou topando qualquer trabalho agora”, mas só encontrou portas fechadas em um fim de ano de crise ou vagas que exigiam o ensino médio completo, que ele não tinha.

No sufoco do seu penúltimo dia na unidade, em 17 de dezembro, Paulinho estampava um olhar angustiado, sem conseguir planejar o futuro. O improvável aconteceu na quinta à noite: uma família, que só o viu uma vez no Tremedal, apresentou-se como voluntária para recebê-lo como filho. Chegaram tão de repente que Paulinho não teve tempo nem de se despedir do abrigo. O seu momento “mais difícil” passou vertiginosamente, e o olhar de ansiedade se converteu em expectativa.

Aos 18 anos, Paulinho havia ganhado uma família completa: pai, mãe, irmãos e até cachorros. Foi morar com eles em um apartamento de 50 m², onde dormia na bicama do quarto de um dos filhos, de 16 anos, com quem estudaria, na mesma sala. Tudo parecia se encaixar: “Ela (a mãe) é carinhosa, eu também sou. Ele (o irmão) gosta de violão, eu também...”, lançou um sorriso que ainda não conhecíamos. No Ano Novo, pela primeira vez, Paulinho saiu de Belo Horizonte e conheceu a praia. “É uma piscina sem fim”, descreveu o mar do Rio de Janeiro, com direito a um selfie na areia, postado no Facebook.

Mas a euforia na casa nova não sobreviveu a um mês. Paulinho, que cresceu sozinho em abrigos, chegou a uma dramática conclusão. “Não dá, minha mente não quer mais. Não consigo mais viver em uma família, ter irmãos. Penso em seguir sozinho”, cumprindo a sentença definida antes de ele ter tido a chance de ser filho: morar na rua. Às 7h de um domingo, juntou suas coisas e saiu.

Quando não é possível que o menor retorne à família de origem ou vá morar com parentes extensos, a instituição começa a trabalhar a autonomia do adolescente para que ele possa sair preparado aos 18 anos. Mas no final, Paulinho se acomodou. "A gente falava com ele para guardar dinheiro porque ia precisar quando saísse, mas ele emprestou", contou a assistente social do Tremedal, Maria Clara Braga.

A inércia era tanta que todos começaram a achar que ele tinha uma “carta na manga” para quando chegasse a hora de deixar o abrigo. Às vésperas da saída, Paulinho passou a se dedicar com mais empenho à busca por emprego, percorrendo o centro da cidade a pé para entregar currículos. “Estou topando qualquer trabalho agora”, mas só encontrou portas fechadas em um fim de ano de crise ou vagas que exigiam o ensino médio completo, que ele não tinha.

No sufoco do seu penúltimo dia na unidade, em 17 de dezembro, Paulinho estampava um olhar angustiado, sem conseguir planejar o adiante. O improvável aconteceu na quinta à noite: uma família, que só o viu uma vez no Tremedal, apresentou-se como voluntária para recebê-lo como um filho. Chegaram tão de repente que Paulinho não teve tempo nem de se despedir do abrigo. O seu momento “mais difícil” passou vertiginoso e o olhar de ansiedade se converteu em expectativa.

Aos 18 anos, Paulinho havia ganhado uma família completa: pai, mãe, irmãos e até cachorros. Foi morar com eles em um apartamento de 50 m², onde dormia na bicama do quarto de um dos filhos, de 16 anos, com quem estudaria na mesma sala. Tudo parecia se encaixar: “Ela (a mãe) é carinhosa, eu também sou. Ele (o irmão) gosta de violão, eu também...”, lançou um sorriso que ainda não conhecíamos. No Ano Novo, pela primeira vez, Paulinho saiu de Belo Horizonte e conheceu a praia. “É uma piscina sem fim”, descreveu o mar do Rio de Janeiro, com direito a selfie na areia, postada no Facebook.

Mas a euforia na casa nova não sobreviveu a um mês. Paulinho, que cresceu sozinho em abrigos, chegou a uma dramática conclusão. “Não dá, minha mente não quer mais. Não consigo mais viver em uma família, ter irmãos. Penso em seguir sozinho”, cumprindo a sentença definida antes de ele ter tido a chance de ser filho: morar na rua. Às 7h de um domingo, juntou suas coisas e saiu.

"Eu não sei ser filho"

Após ganhar uma família aos 18 anos, ele não se adaptou e abandonou o lar para voltar a viver sozinho.

Data: 26 de Janeiro de 2016. Nome: Paulo Mateus Soares da Silva. Idade: 18 anos. Escolaridade: 2° grau incompleto. Pai: desconhecido. Mãe: desaparecida. “Ele não tem ninguém?”, perguntou a mulher na recepção do albergue de moradores de rua. “Nem avós, nem tios, nem primos, nenhum parente?”, insistia, sem querer acreditar que aquele menino um tanto inocente, de olhar perdido, escolheu parar em um lugar cercado por pessoas envolvidas com drogas e violência. Além da ingenuidade aparente, o figurino – tênis, bermuda e uma blusa, estampada no peito com “geração forte” – o diferenciava. Foi instruído a colocar um chinelo, ou poderia ser roubado.

Carregava com ele “sua mudança” – duas mochilas e duas sacolas –, o que era muita coisa para quem chegava apenas para dormir. “Isso aqui não é lugar para ele”, ponderou a moça. Paulo saiu da casa de acolhimento onde morava com mais 13 adolescentes, ensaiou um convívio familiar em um apartamento, mas acabou em um alojamento junto a 150 adultos com trajetória de vida nas ruas.

Entre a infância e a adolescência institucionalizadas, Paulo esteve na posição de vítima diversas vezes, inclusive de si próprio, quando se boicotou em entrevistas de empregos e não construiu laços afetivos. Conheceu o abrigo aos 8 anos, após vizinhos denunciarem a negligência da mãe com ele e as duas irmãs. Nos dez anos seguintes, não teve mais experiências em família. “Se ela é viva hoje, não quero saber”, é só o que ele diz sobre a genitora. Também não sabe o paradeiro das irmãs, que tiveram mais sorte e foram adotadas ainda crianças.

Os técnicos do acolhimento nunca encontram nenhum parente de Paulo. Enquanto era menor, ele sequer teve uma madrinha afetiva – espécie de mãe voluntária aos fins de semana – com quem pudesse criar vínculo, ouvir conselhos e se aproximar de um ambiente familiar. O sistema social que o assistiu até a adolescência também não garantiu que ele fosse preparado para caminhar com as próprias pernas, muito menos para a vida em família.

Quando apareceu uma que lhe ofereceu um lar, Paulo não sabia mais ser filho – já havia se acostumado a ficar sozinho e desaprendido a amar. O albergue de moradores de rua era, lamentavelmente, seu destino.

Convivência

Paulo não soube lidar com a rotina em família. Chegou a se entusiasmar com as palavras “pai” e “mãe”, que passaram a fazer parte de seu vocabulário após dez anos de vazio. “É como se eu tivesse encontrado minha família de verdade. Era isso que Deus reservava para mim”, expressou em sua primeira semana como filho. Mas não entendeu o sermão de um pai por ter mentido que escovou os dentes antes de dormir. Mentiu outras várias vezes por bobagens e não aceitou mudar, nem mesmo depois da conversa com um psicopedagogo voluntário.

A família, muito religiosa, não desistiu dele, abriu as portas da casa por acreditar que a missão de quem tem fé é “socorrer órfãos e viúvas”. “Paulinho é um anjo que Deus mandou para a gente. Eu disse que ele podia ficar aqui o tempo que precisasse”, disse Cláudia Ramos, 43. No dia em que o visitamos, quase um mês depois de sua chegada ao pequeno apartamento, era perceptível que a nova família ainda estava tentando se adaptar. “Acredito que erramos em relação às clarezas das regras, porque ele chegou em um universo muito diferente. Acho que ele se cobra muito”, ponderou a nova mãe.
Talvez tenha sido com Lindinha, a cadela da raça pinscher, com que ele mais conseguiu se relacionar. Paulo ficava o tempo inteiro a acariciando, enquanto se mostrava menos empolgado com aquilo que parecia um sonho na primeira semana. “Tudo que é novo para mim, é difícil. Não confio em ninguém”, disse o rapaz.

Andando com as próprias pernas

No caminho para o albergue de moradores de rua, Paulo se manteve em silêncio. Só respondeu, com dificuldade, a Bruno Pedrosa – voluntário que o levava – que tentaria ser sempre o “número 1” e não se perderia naquele lugar. Em sua cabeça, lá seria como a Casa Tremedal, “só que para adultos”. Mas era apenas um local para ele comer, dormir e tomar banho. Poderia chegar a partir das 17h e sair às 7h do dia seguinte. Quando deu de cara com os outros moradores de rua, alguns sujos, malvestidos, logo avisou: “Não vou ficar muito tempo aqui. Esse lugar não é bom”, olhava, assustado.

A vaga na unidade estava garantida até o fim de março e foi solicitada por Lídia Pedrosa, mulher de Bruno, com quem ele fundou a Associação Integração, da qual faz parte a família que tentou acolher Paulo. Ele tinha dois meses para conseguir um emprego e se estabelecer em outro lugar. No domingo em que ele saiu da casa da Cláudia Ramos, Lídia o levou para conhecer a realidade de moradores de rua. “Paulinho chorou muito e se arrependeu, mas teria que arcar com as consequências do que fez”, contou.

O choque de realidade surtiu efeito, e Paulo passava o dia todo em busca de trabalho. Mas precisou da ajuda de Lídia, que imprimiu currículos, guardou os pertences dele, inclusive o tablet, e lavou suas roupas, já que ele não tinha onde fazer isso. “Está sendo difícil esse mundo novo sem meu tablet”, desabafou Paulo, sem se dar conta de que penoso mesmo seria se ele estivesse na rua sem o apoio da associação.

Com o empurrãozinho de Lídia, ele logo conseguiu um emprego fixo como repositor de supermercado, próximo ao abrigo Tremedal. Antes do primeiro salário, ele recuperou um empréstimo de R$ 20 que fez a um amigo, e disse que iria matar uma vontade que há tempos lhe dava água na boca: comer um hambúrguer.

Em fevereiro, Paulo iniciou o ano letivo na mesma escola em que estudava, agora vivendo por sua conta. “Prefiro ser sozinho, andar com minhas próprias pernas. Acho que estou amadurecendo”, reconheceu. Já deixou o albergue e alugou um quarto. Agora, almeja voos mais altos, ainda que vagos: “Quero ter minha casa e acho que vou estudar música”.

Diz Paulo Mateus que ganhou o violão quando morava no abrigo. Chegou a fazer aulas com um professor voluntário e já compôs algumas melodias, que posta no Facebook. Sonha em fazer faculdade de música.