A volta para casa é um sonho

Retorno familiar é o grande desejo de acolhidos e o maior desafio do trabalho dos técnicos

O futuro dos irmãos Walter*, 13, e Ariel*, 12, seria decidido em uma audiência, na qual o juiz estava prestes a destituir o poder familiar do pai, Isac*,35, com histórico de alcoolismo e de negligência. Mas, toda vez que Isac ia ao abrigo para buscar Walter e com ele passar o fim de semana, o olho do menino brilhava: largava tudo que estivesse fazendo e saía orgulhoso por ter o pai, mostrando que ele não era uma criança de abrigo. Isso foi o que talvez tenha pesado na decisão judicial que deu a Isac um voto de confiança, com a guarda de dois filhos de volta.

Pedreiro, Isac tem oito filhos. A esposa morreu aos 24 anos, vítima do mundo do crime e das drogas, e o deixou “com seis filhos na costela”, contou. “Se não tivessem morrido alguns, seriam 11. Eles começaram a ficar muito sapecas, aprontaram demais. Aí o Conselho Tutelar pegou”, recordou. Só dois ainda estavam em abrigos, três foram adotados, dois já moravam com ele, e um está na Bahia, calculava Isac. Antes de conseguir a guarda de Walter e Ariel, o pedreiro estava confiante e demonstrou isso no dia em que o encontramos no abrigo Tremedal, onde morava um dos meninos.

“Vou pegar os dois de volta, estou correndo atrás disso na Justiça, sempre visito eles. Qual o pai que não quer o filho, né? Isso é minha alegria”, afirmou Isac, que acabara de largar o serviço, ainda sujo da obra, e tinha ido direto buscar o filho no abrigo. “Meu garoto gosta de ir comigo”, disse e abraçou o menino, que não escondeu a alegria.

Poucos dias depois, quem nos deu a notícia sobre o parecer do juiz foi o próprio Walter, por mensagem postada no Facebook: “Vou embora ‘para sempre’ do abrigo. Vou morar com meu pai ‘para sempre’”, escreveu, com emoticons de coração. Esse foi um caso bem-sucedido de um adolescente que retornou à família de origem depois de um intenso trabalho dos técnicos do abrigo – que ainda o acompanharão por seis meses, por regra –, mas não é sempre assim.

“Providenciar escola, curso, trabalho, documentação, saúde, passeios, esportes... isso tudo é tranquilo. O grande desafio é o trabalho de reintegração familiar, porque os vínculos muitas vezes já foram rompidos, a mãe e o pai não podem recebê-los de volta, fazem uso de álcool e outras drogas”, explicou a assistente social do abrigo Maria Clara Braga.

Trabalho

Enquanto o menor está no acolhimento, os técnicos fazem visitas domiciliares, contato com a família extensa (tios, primos, etc.) e buscam apoio de outros órgãos. Somente em último caso, abrem o processo de destituição do poder familiar para incluí-lo no cadastro de adoção, embora encontrar uma família substituta para um adolescente seja o mais difícil.

Educadores assumem com prazer missão de disciplinar meninada

Os pais são “figuras” tão importantes para os acolhidos, que basta um adolescente falar da mãe do outro para começar um conflito no abrigo. “Aí é que você vê onde está a carência deles. Tem menino que é mais complicado, mas a gente aprende a lidar”, disse o educador Vanderlei Gomes, 40. No primeiro dia de trabalho dele na Casa Tremedal, o impacto foi tão intenso que Gomes não sabia se voltaria para o plantão seguinte. “Na primeira vez eu tive medo. Achava que não ia conseguir”, contou.

Desde então, já são 12 anos trabalhando lá e, atualmente, o cargo se tornou uma paixão, a ponto de ser sofrido tirar férias. “Fiquei contando os dias para voltar. Eu não trabalho aqui por causa do salário, é porque eu gosto mesmo. Minha alegria é pegar esses meninos e sair por aí com eles, passear, jogar bola”, disse Gomes.

Os educadores são responsáveis por cuidar dos adolescentes e manter a disciplina, fazendo valer as regras da casa. Eles trabalham em dupla, por 12 horas, dia sim, dia não, nos períodos diurno e noturno. Precisam ter o ensino médio completo e recebem cerca de R$ 1.000 por mês.

Diante da difícil missão de cuidar de 14 adolescentes, quem escolhe ser educador o faz pelo prazer. O psicopedagogo Carlos André Leandro da Silva, 34, além de trabalhar no abrigo, é também agente socioeducativo em um centro de internação de menores em conflito com a lei. “Gosto de cuidar de garotos às margens da sociedade, para transformá-los”, frisou.

Mas nem sempre a tarefa é só gratificante. Educar nesse caso é também ouvir desaforos, ameaças, insistir na evolução deles, separar brigas e até sofrer agressões. “Tive que tirar um pau que estava na mão de um deles uma vez. Tem fazer aula de luta para trabalhar aqui”, disse, em tom de brincadeira, uma educadora.

Grupos voluntários de psicologia também ajudam na preparação e nas dúvidas dos educadores. Eles são orientados a não se envolverem emocionalmente com os acolhidos, no entanto, ao se tornarem referência de adulto para os menores e nutrirem carinho e cuidado, isso é inevitável. Não raro, viram padrinhos de batismo de garotos que passaram pelo abrigo.

Famílias acolhedoras

Devido à carência afetiva, os adolescentes agarram qualquer oportunidade que têm de sair da casa de acolhimento. Ficam verdadeiramente agoniados à espera de um passeio, uma atenção individual.

Recentemente, virou lei em Belo Horizonte o serviço de famílias acolhedoras com as quais as crianças convivem por até dois anos no ambiente familiar. Atualmente, são 13 menores acolhidos em casas de voluntários, e deles apenas uma é adolescente (de 12 anos).

Processos precisam ser mais rápidos

A demora no processo judicial dos menores abrigados preocupa juízes, defensores e promotores da infância. “A gente tem alertado que as crianças devem ser prioridade, porque o tempo delas é diferente de qualquer outro”, declara o desembargador Wagner Ferreira. Para a promotora Paola Domingues, é preciso trabalhar melhor o financiamento das entidades para que as equipes técnicas desempenhem suas funções e os processos andem na celeridade adequada.

“Em Minas Gerais como um todo, vemos crianças permanecendo por um tempo grande nos abrigos”, aponta Paola. Segundo ela, uma resolução nacional determina que o Ministério Público faça visitas frequentes às entidades para verificar a estrutura de funcionamento e o andamento dos casos.

* Nomes fictícios