Abandono Familiar

Jovens carregam as mais variadas fragilidades, como déficit de atenção e desestímulo

Em uma apertada sala de televisão, 14 meninos assistiam ao filme “Pequenos Grandes Astros” como se estivessem em uma sessão de cinema. Mas eles estavam ali, em um abrigo de adolescentes, porque foram vítimas de alguma violência e precisaram ser afastados de suas famílias. Aquele cômodo em que se amontoavam reunia as mais diversas vulnerabilidades sociais.

Augusto*, 12, foi estuprado pelo professor da escola. Pedro*, 13, foi largado ainda pequeno com o irmão dentro de casa por quatro dias, comendo alimento podre. Júlio*, 16, é filho de moradores de rua que perderam o poder familiar sobre ele. Francisco*, 17, era obrigado pela mãe a pedir comida no supermercado até os 7 anos. Outros também foram forçados a trabalhar e até a assaltar ainda crianças, ou possuem famílias envolvidas com o tráfico de drogas.

Mas o filme contava a história de um garoto de um orfanato norte-americano que encontrou um tênis mágico para realizar seu sonho. E se esse sapato milagroso fosse parar no abrigo Tremedal, em Belo Horizonte – perguntaram as voluntárias (estudantes de psicologia que promoveram a sessão com pipoca) –, o que os meninos fariam? “Queria usar o tênis para mudar o que as mães fizeram com as crianças que foram para o abrigo, e manter os filhos perto dos pais”, confidenciou um dos garotos. “Aí nem mágica resolve”, retrucou o do lado.

A proposta da atividade, explicada ao final, era fazê-los acreditar que o tênis que pode mudar a vida deles está na força de vontade de cada um. “Todo mundo quer o tênis, mas ninguém estuda, só eu”, argumentou, então, Luiz*, 16.

No abrigo, eles têm quase tudo que um adolescente precisa para crescer “forte”, mas faltam afeto, amor de mãe e atenção de pai. A fala emocionada de Anderson*, 13, é a expressão dessa ausência: “Minha mãe, uma vez, disse que me amava”. Mesmo com todo o empenho do mundo, os educadores que cuidam deles não conseguiriam, em 12 horas de plantão, dar conta de toda essa carência que os meninos carregam. Nós, repórteres, sentimos isso já na segunda visita que fizemos à casa, quando passamos a ser chamadas de tias e tios, recebendo abraços aconchegantes e, na despedida, a mesma pergunta: “Quando vocês voltam?”.

A maioria dos meninos faz uso de medicamentos. Os efeitos colaterais que o abandono familiar provoca neles abrangem defasagem escolar, déficit de atenção e tendência a problemas psiquiátricos. “Providenciamos os encaminhamentos em relação à saúde, à educação e a outros aspectos que possam minimizar essas dificuldades”, explica o psicólogo do abrigo, Fabiano Loureiro. É por isso que o acolhimento institucional é a última das medidas de proteção a ser aplicada a uma criança, apenas quando os vínculos familiares estão completamente fragilizados. E, quando chega a esse ponto, muitas vezes, é irreversível.

Com os pequenos, é mais fácil conseguir um futuro fora da instituição. Mas a adoção tardia não é uma cultura brasileira. Enquanto 96,5% dos pretendentes querem crianças de até 7 anos, o cadastro nacional mostra que, atualmente, 75% dos menores já passaram dessa idade. (veja os números abaixo).

Diante desse cenário, Maurício*, 13, é uma exceção. O padrinho afetivo pediu a guarda dele na Justiça e o levou para morar em um bairro nobre da capital mineira. Esse é o primeiro passo para, futuramente, o adolescente passar a ser seu filho legal. Mas Maurício tem um irmão gêmeo que continua na casa de acolhimento – Marcelo*, 13, tem uma deficiência na perna e, por isso, recebe um salário mínimo do governo.

Os dois foram acolhidos com 7 anos e planejam morar juntos. Maurício sempre visita o irmão no abrigo. Há quatro anos, eles não têm notícias dos pais. “Mas me lembro de tudo, da vida na rua (durante três anos), das drogas, das brigas”, diz Marcelo, que pergunta: “Foi bom para o meu irmão sair daqui, né, tia?”, e ele mesmo responde: “A casa que ele está é muito boa. O padrinho dele disse que, se eu estudar, vai me ajudar quando eu tiver 18 anos”, agarrando-se à esperança que lhe resta.