Medo de ser independente

Para quem cresceu em abrigos, sair desse ambiente é o maior desafio para encarar a vida adulta

No mesmo dia em que viu Paulo Mateus se despedir do abrigo, Lucas Moreira se tornava um “dezoitão”, no dialeto dos meninos da Casa Tremedal. Consciente de que seria o próximo a sair da instituição, nenhum abraço de parabéns parecia confortável para ele naquela data. À tarde, Lucas recebeu uma ligação da irmã mais velha, e os educadores providenciaram um bolo improvisado para comemorar. Ao contrário do Paulo, ele tinha para onde ir, poderia morar com uma das irmãs, de 20 e 24 anos, que deixaram o acolhimento anos antes dele. Mas isso não diminuía sua angústia, e ele mal conseguia sustentar um sorriso de canto de boca. Assim como a maioria dos meninos institucionalizados há mais tempo, Lucas temia ser independente, trabalhar e enfrentar os desafios da vida adulta, porque não se sentia preparado.

Lucas sempre contou com o cuidado e a assistência dos cinco abrigos da capital por onde passou durante 11 anos. Sem conhecer o pai, ele foi levado para o acolhimento aos 7 anos após ser constatado que a mãe, usuária de drogas, não tinha condições de cuidar dele e dos seis irmãos – entregues a instituições devido a históricos de abandono e trabalho infantil. Eles acabaram ficando em abrigos diferentes, separados por gênero e idade.

O mais difícil para Lucas no período de acolhimento foi ter que ficar longe da família. Uma década de estadia em abrigos foi suficiente para que se tornasse difícil justamente viver fora deles. Próximo de sair, Lucas ainda estava sem emprego e sem saber com qual das irmãs mais velhas moraria dali para frente. “Eu não decidi ainda (o que vou fazer)”. Ele tem uma ligação mais forte com o irmão mais novo, Leandro*, 14, e sobre isso demonstrava certeza: “quero ajudá-lo”. Afirmava que iria levá-lo para morar com ele ao sair do acolhimento, apesar de ainda não ter responsabilidade para isso.

Até o ano passado, os dois estavam no mesmo abrigo, mas foram separados, porque, na avaliação de psicólogos, o convívio não fazia bem para os meninos. Leandro, considerado o “terror” dos educadores, badernava contando com a proteção do irmão, que, ao defendê-lo, se envolvia em confusão. “O que eu mais senti falta (quando mudei de abrigo) foi do meu irmão”, recorda Lucas.

A timidez que sobra no Lucas falta no mais novo, que é brincalhão e bagunceiro. O carinho entre eles não é visto em um abraço, mas na consideração e na vontade de estarem juntos. No dia do aniversário do Lucas, à noite, seria a “festa da família” no abrigo Dom Bosco, onde Leandro mora – a cerca de 13 km do Tremedal, mais de uma hora de ônibus. Os convidados para o encontro eram parentes e padrinhos dos acolhidos, e como Lucas era “a família” do irmão, foi para o evento.

Monossilábico

Na tentativa de conhecer um pouco mais a sua história, nos oferecemos como companhia para Lucas, mas o “dezoitão” dificilmente falava, exibia poucos sorrisos tímidos ou proferia apenas “uhum” e “não sei”, usando sempre o artifício de repetir a pergunta. Na verdade, o silêncio dizia muito sobre ele. Lucas não se fechou à toa. Não teve a mãe para lhe educar, conversar e dar afeto. Apesar de tudo, ela lhe fazia falta todos os dias.

No abrigo, Lucas passava a maior parte do tempo assistindo televisão sozinho ou no vídeo game emprestado por um vizinho. Enquanto alguns adolescentes matraqueavam, pouco ouvíamos a voz dele. Os funcionários o definem como um menino “bonzinho” e “na dele”. E foi esse jeitinho que conquistou uma educadora da antiga unidade onde ele morava. Quando ele saiu, ela pôde se tornar sua madrinha afetiva. Por isso, Lucas respondeu sobre a melhor parte da vida em abrigos: “Conhecer pessoas que me ajudaram”.

Mas completar 18 anos o atormentou tanto que ele não quis mais saber da madrinha, muito menos conversar com os educadores e os técnicos da casa. Precisou tomar remédio controlado. “Ele se esquiva de qualquer conversa. Não está querendo falar sobre a saída do abrigo”, contou, à época, o psicólogo do Tremedal, Fabiano Loureiro. No dia 23 de dezembro de 2015, cinco dias depois do aniversário, Lucas arrumava suas malas (sacolas plásticas e mochila) para ir embora.
“ Você está feliz?” “Sei não.”
“ Mas está a fim de sair do abrigo?” “Não”.
Mais tarde, apertou a mão dos colegas acolhidos, abraçou sem jeito um dos educadores e seguiu com a irmã para a “vida adulta” da qual tanto evitou falar.

Ser jogador de futebol não passou de um sonho

Quando um adolescente leva jeito no futebol e diz que quer ser jogador, não é raro os pais o levarem para treinar, fazer testes em times e estimular o talento. Com Lucas não foi assim. Além de ser um “menino de abrigo”, onde os encaminhamentos são naturalmente mais trabalhosos, sua inibição e sua insegurança podem ter dificultado. É bem provável que ninguém tenha percebido essa vontade para orientá-lo.

Nem ele sabe explicar o motivo de nunca ter feito um teste. E por que não tenta agora? “Já passei da idade de ter alguma chance”. O desânimo da resposta vem de um garoto aparentemente cansado de ver esse e outros sonhos passarem desamparados pelos anos de abandono. E, com a chegada dos 18 anos, veio a necessidade de trabalhar, dissolvendo ainda mais o sonho de Lucas de ser jogador. “Queria mesmo era jogar bola. Não sei se eu conseguiria passar nos testes, mas queria ter tentado”, lamentou.

Nas tardes em que o futebol tomava conta da rua em frente à Casa Tremedal, Lucas se sobressaía. Todos garantem que ele “é bom de bola”. Seus passatempos prediletos eram a “pelada” no fim de semana em uma quadra próxima ao abrigo e o jogo de futebol no vídeo game.

Em novembro, ainda no abrigo, Lucas conseguiu um emprego como entregador de marmitex, por indicação do cunhado. Ele estava no final do período letivo e conciliava o trabalho, de dia, e a escola, à noite. “Não tô gostando do serviço, porque tem que andar muito. Mas o salário é R$ 930”, feliz com a quantia que considerava alta. Mas nem isso o segurou no cargo, que abandonou em duas semanas. “Vou esperar arrumar outra coisa. Meu cunhado disse que vai me ajudar”.

Lucas quer encontrar a mãe

Simone. O nome tatuado nas costas é uma das poucas recordações que Lucas Moreira tem da mãe. Mas ela nunca viu a homenagem do filho. Eles não se encontram desde que o garoto foi acolhido por um abrigo, há 11 anos. Ela “espancava” (nas palavras da irmã) os filhos, obrigava-os a pedir dinheiro na rua e os abandonou, mas era a mãe que eles tinham, não importava o que ela tivesse feito. A tatuagem responde por Lucas o que a genitora representa para ele. A irmã de 24 anos, com quem Lucas foi morar ao sair do abrigo, conta que também sente falta do carinho materno até hoje.

Enquanto estava no acolhimento, Lucas não podia encontrar com a mãe, porque ela havia perdido o poder familiar sobre os filhos. Mas, assim que ele foi morar na casa da irmã, já expressava a vontade de ir em busca de Simone. Estar mais próximo da família resgatou esse desejo: “Vou procurar minha mãe. Tenho saudade dela”, disse. Perguntado, então, sobre o que ele faria se a encontrasse, Lucas abre um sorriso largo e responde: “Não pensei ainda não”, como se aquilo fosse um sonho ainda distante. Em seguida, conta que a levaria para morar com ele. Já a irmã fala sobre mágoas, ao mesmo tempo em que expressa a vontade de um abraço.

A ausência da mãe estava sendo superada pela proximidade entre os irmãos, que, aos poucos, era retomada. Em uma casa de três cômodos, Lucas passou a se sentir acolhido de verdade, após 11 anos de vida institucional. Ele, que sempre dividiu o quarto com outros três adolescentes no abrigo, agora dormia com dois sobrinhos, de 2 e 4 anos, e podia ajudar a irmã a cuidar deles. Em troca, ele tinha a promessa – ou o consolo – de que ela iria sustentá-lo pelo tempo que for preciso. “Não vou abandonar o Lucas. Eu e meu marido vamos ajudá-lo em tudo, inclusive para ele conseguir um trabalho e construir a vida sozinho. Nós somos uma família”, afirmou a irmã, que pediu anonimato.

Adaptação

Antes de ir para a casa dela, Lucas tentou morar com a outra irmã, de 20 anos, com quem mostrava ter mais afinidade. Não deu muito certo, e, dias depois, ele se juntou à mais velha. Precisou de algumas semanas para se adaptar lá também. No início, Lucas não estava à vontade com a mudança. Mas, quando se sentiu seguro, aquela expressão desnorteada que exibia antes de deixar o acolhimento deu lugar a de um garoto mais motivado, e até mais falante – era o efeito de poder contar com o apoio da família. “Foi bom ter saído do abrigo”, já dizia ele com a firmeza de quem estava em um lar, entre irmãos. Os novos planos do garoto vão desde tentar vestibular para ciência da computação até fazer um curso para cabeleireiro. “Quero ter uma profissão”, disse ele, sem voltar a falar do futebol.

Ele precisava logo de um emprego. Mas quase dois meses depois de deixar o abrigo, mesmo contando com indicação de familiares, Lucas ainda não havia conseguido trabalho. Não recebeu respostas às entrevistas que fez. “Espero que alguém ligue. Vou continuar procurando”, afirmou, no último contato que a reportagem conseguiu fazer com ele.

À época, o “dezoitão” também tinha outra preocupação: continuar os estudos, pois ele ainda não terminou o ensino médio, estava atrasado dois anos. Em fevereiro, as aulas já tinham começado, e Lucas não havia conseguido se matricular na escola próxima a sua nova casa. “Minha irmã está tentando resolver a documentação, mas não tem vaga”, justificou.

Irmãs desejam um destino diferente para ele

Leandro*, 14, o mais novo dos irmãos, é o único que ainda está em abrigo. Lucas está determinado a tirá-lo de lá antes de o menor chegar aos 18 anos, mas a vida simples que ele e as irmãs levam ainda não oferece condições para isso. A irmã com quem Lucas mora atualmente tem dois filhos, e a irmã mais nova, Jéssica Moreira, 20, tem um menino de 3 anos. Hoje Jéssica dá conta de sustentar o filho trabalhando de dia e fazendo bicos à noite, mas admite que já pensou em entregar o garoto para a adoção por causa das dificuldades.

“É difícil crescer sem a mãe, a gente precisa de uma pessoa para ensinar, para aconselhar”, afirma Jéssica, reproduzindo um pouco da vida que ela e a irmã de 24 anos escolheram ao sair do abrigo onde moravam, na adolescência, para viver na rua. As duas recorreram à prostituição e às drogas para conseguir ter o que o acolhimento garantia a elas por lei: “comida feita, roupa lavada...”, cita Jéssica. Ao perder isso, aos 14 anos, ela teve “que fazer coisas que ninguém deveria aprender”. E o que mais a assustou: “Vi o olhar de maldade das pessoas”.

Agora, ela e a irmã querem ajudar Lucas e, futuramente, Leandro, para que eles não tenham “o mesmo destino”, na definição delas. “O Lucas tem a gente e tem que aproveitar isso para concluir os estudos e procurar um emprego”, deseja Jéssica, que também fala no próprio sonho: ser policial.

Ouça o podcast

* Nome fictício