Nesta segunda-feira (6 de março), completa-se um mês desde a prisão de Katia Cristina, de 30 anos, sob suspeita de ter maltratado o filho de 4 anos que acabou morrendo, em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de Belo Horizonte. A prisão da mulher aconteceu no último dia 6 de fevereiro e, até 15 dias depois, quando outros dois filhos dela de 6 e 9 anos foram resgatados do cárcere privado em um apartamento no bairro Lagoinha, na região Noroeste da capital mineira, pouco se sabia da possibilidade dela, na verdade, ser uma vítima no complexo caso.
Após os dois meninos serem resgatados, surgiu então a suspeita de que Katia, na verdade, poderia ter sido aliciada ao chegar na rodoviária e, na cidade da Grande BH, forçada a trabalhar e a fazer sexo com o homem que, inicialmente, foi apresentado como namorado da mulher.
A reportagem de O TEMPO conversou com a sargento Patrícia, da Polícia Militar (PM) de Igarapé, também na região metropolitana da capital mineira. Ela foi uma das responsáveis por conversar com Katia no dia de sua prisão, ainda no hospital onde o menino de 4 anos foi levado. Ela conta que, no dia, a mulher parecia estar "ensaiada" para responder sobre os ferimentos encontrados na criança.
"Hoje, pensando bem, parecia que ela estava com um ensaio, pois tudo que questionava ela respondia prontamente. Perguntamos se ela tinha comida em casa, se recebia dinheiro do pagamento, e ela rapidamente respondeu que sim. Falamos dos machucados da criança e ela tinha resposta para tudo. A queimadura no pé ela falou que ele calçou sapato com meia molhada e queimou ao roçar. Outra queimadura ela disse que foi de lagarta. O pé ela falou que estava quebrado por que ele caiu", conta a policial.
Ela também conta que, por suspeitar da violência do homem de 31 anos, que também se encontra preso e que foi apresentado como namorado dela no hospital, perguntou sobre o quanto ela havia emagrecido, já que a mulher perdeu cerca de 45 kg em um ano.
"Eu estava tentando pegar dela se ela estava sofrendo algum tipo de abuso por parte do cara que eu acreditava ser companheiro dela, e ela respondia que não. Questionei que ela emagreceu demais em um ano e ela respondeu: 'você conhece limão-capeta? Eu bebo água com limão-capeta'. Eu acho que foi feita uma lavagem cerebral, que ela devia achar que era totalmente dependente de lá", argumenta a sargento Patrícia.
Na última sexta-feira (3 de março), Katia foi conduzida à delegacia para prestar um novo depoimento, desacompanhada de um advogado. As novas oitivas aconteceram um dia após a Polícia Militar (PM) descobrir um cativeiro no lote onde a mulher e seus cinco filhos estariam vivendo até a morte de um dos meninos.
No local, a corporação e agentes do Corpo de Bombeiros encontraram um cômodo sem portas e janelas, com entrada apenas pelo telhado. Também foi confirmado que o mal cheiro, que incomodava vizinhos, seria de um cachorro morto. Porém, os bombeiros não descartaram a chance de haver cadáveres enterrados no local.
Meninos continuam internados 14 dias após resgate
Nesta segunda, os dois garotos de 6 e 9 anos continuavam internados no Hopital Odilon Behres, de acordo com a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). Eles estão na unidade de saúde desde o dia do resgate, ocorrido em 21 de fevereiro, terça-feira de Carnaval.
Conforme adiantou O TEMPO na última semana, os dois garotos continuam hospitalizados por precisarem de "reaprender a comer", por conta da desnutrição severa em que foram encontrados no apartamento do bairro de BH.
Na ocasião, o tio das crianças, Kerisson Cristiano Robes, que os acompanha na unidade de saúde e que vai pedir a guarda deles à Justiça, informou por telefone, sem entrar em detalhes, que os sobrinhos “estão bem” e que ele está recebendo ajuda para se manter em Belo Horizonte, já que precisou deixar o emprego de carpinteiro em Valparaíso de Goiás (GO).
Relembre o caso
- O resgate
As crianças, de seis e nove anos, foram resgatadas na terça-feira, 21 de fevereiro, trancadas em um apartamento do bairro Lagoinha, na região Noroeste de Belo Horizonte. Segundo a Polícia Militar, elas estavam com sintomas de desnutrição e febre. Elas ficaram trancadas por três dias, sem alimentação.
Conforme informado pela polícia, as vítimas estavam magras, usavam roupas sujas e o ambiente onde elas estavam era escuro e encardido. Após o resgate, as crianças foram encaminhadas para o hospital Odilon Behrens, no bairro São Cristóvão, onde estão reaprendendo a comer devido à desnutrição severa.
- A denúncia
A denúncia foi feita por uma vizinha, a vendedora Poliana Pereira dos Santos, de 37 anos. Ela acionou a polícia depois que percebeu que elas estavam sozinhas no apartamento e sem o auxílio de familiares. Ela tentou alimentar as crianças por um buraco na parede do apartamento. A porta da residência onde elas estavam foi trancada com um cadeado e correntes.
- O local em que as crianças estavam
Conforme a denunciante, no local em que as crianças estavam, havia uma vasilha de comida com bicho. Em entrevista ao TEMPO, ela descreveu o cenário. "Encontramos muita sujeira, o cheiro era tão forte que, quando os policiais abriram a porta, nem eles aguentaram. A gente se emocionou muito quando vimos os dois, com os bracinhos fininhos, um deles sem conseguir nem falar. Aí começamos a chorar. Aqui tudo sujo, tudo podre, vasilha com bichos, colchão no chão", relatou.
- Menino sentiu cheiro de churrasco e pediu comida
Uma das crianças resgatadas pediu um pouco de comida para a vizinha depois que sentiu o cheiro do churrasco que era feito por ela. "Meu sobrinho estava andando de bicicleta aqui e, pelo buraquinho, ele viu e pediu um pouco de comida. Meu sobrinho, que tem mais ou menos a idade dele, veio até mim e contou. Fui até a porta e vi os dois, um deles disse que estava com fome e pediu churrasco para ele e o irmão. Pedi para ele abrir a porta, e ele falou que podia ser por ali mesmo. Falei que a vasilha não cabia no buraco. Ele, então, sugeriu que eu colocasse em uma sacolinha e disse 'eu estou com muita fome, me dá churrasco'", detalhou a vendedora Poliana dos Santos, de 37 anos, responsável por fazer a denúncia para a polícia.
A criança disse para a vendedora que elas estavam acompanhadas da avó. No entanto, o menino voltou a pedir comida durante a noite daquele dia, o que intrigou a vizinha e indicou de que elas estariam sozinhas.
- Os responsáveis pelas crianças
A investigação apontou que as crianças são filhas de uma mulher, de 30 anos, que foi presa por maus-tratos a outro filho, morto no último dia 6 de fevereiro. O caso foi registrado em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana da capital. De acordo com o boletim de ocorrência, no início do mês, a mulher levou o filho de 4 anos ao médico, mas a criança já estava morta. O menino chegou com lesões no olho, inchaço no pé e queimaduras no tornozelo.
O pai biológico das crianças, segundo a apuração do caso, teria morrido de Covid-19, em 2020. Em depoimento à polícia, uma das vítimas resgatadas no apartamento, na última terça-feira (21), informou que elas haviam vindo de São Joaquim de Bicas, na semana anterior ao resgate, e que a avó teria passado a noite de sábado (18) com elas, mas não retornou.
Três boletins de ocorrências, em nome dele, e datados de março de 2022 foram localizados. As ocorrências teriam sido confeccionadas nas cidades de Paracatu e João Pinheiro, ambas na região Noroeste de Minas, e se referiam à perda de documentos.
- Crianças resgatadas possuem duas irmãs que estão em abrigo
Duas meninas, de 1 e 2 anos, que são irmãs dos meninos resgatados na última terça-feira, dia 21 de fevereiro, no bairro Lagoinha, estão em um abrigo, sob a tutela do Estado. A informação foi confirmada ao TEMPO pelo Conselho Tutelar de São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de Belo Horizonte.
As meninas foram encaminhadas para unidade no dia 6 de fevereiro, depois que a mãe delas foi presa após levar um de seus cinco filhos, um garoto de 4 anos, com ferimentos para uma unidade hospitalar da cidade. O menino acabou morrendo devido à gravidade dos ferimentos que sofreu. No momento da prisão, a mulher teria omitido a existência dos dois filhos mais velhos, de 6 e 9 anos, resgatados na capital mineira.
- Advogados acreditam que ela foi vítima de escravidão
Apesar da suspeita de maus-tratos contra o filho de 4 anos que recai sobre Kátia, os advogados acreditam que ela e a família tenham sido vítimas de uma quadrilha que alicia pessoas e as força ao trabalho análogo à escravidão. O garotinho morreu.
- Cativeiro de crianças é encontrado
Cubículos com pequenas camas, sugerindo para um possível "cativeiro de crianças", foram encontrados na madrugada de 2 de março no lote em São Joaquim de Bicas onde uma família teria sido mantida em cárcere privado. A Polícia Militar (PM) compareceu ao local após um pedido de "ajuda" da advogada Andrezza Araújo, que chegou a defender Kátia Cristina, de 30 anos. Cheiro de 'carniça' foi sentido no 'cativeiro de crianças', no entanto era de cachorro morto.
Segundo a corporação, a "informante" relatou que no local onde o menino de 4 anos foi espancado e morto "existiria um compartimento trancado por telhas onde possivelmente poderiam estar outras crianças". Ao chegar no local, os militares do Grupo Especializado em Recobrimento (GER) encontraram os cubículos com "caminhas".
- Possibilidade de tortura
A Polícia Civil admitiu, nesta quinta-feira (2 de março), a possibilidade de as crianças resgatadas e do irmão delas, que morreu no início de fevereiro, terem sido torturados durante o cárcere privado no terreno em São Joaquim de Bicas.
Por meio de uma nota, a instituição policial informou que está apurando se o local "abandonado e possivelmente utilizado para manter crianças em cárcere privado e prática de torturas" teria relação com a investigação de maus-tratos que vitimaram a criança de 4 anos.
- Lugar onde crianças teriam ficado encarceradas
O cativeiro, que tinha acesso apenas pelo telhado, tinha um banheiro, uma televisão e uma espécie de portinhola que estava trancada e dava acesso a um cômodo superior. Um vídeo feito no local mostra militares quebrando uma entrada na parede e, também, o cômodo completamente escuro e fechado, que era coberto por telhas de amianto.
De acordo com a PM, o cômodo estava "caracterizado como local de cárcere" e fica em um ponto isolado do terreno, onde, se alguém gritasse, ninguém conseguiria ouvir. Assista ao vídeo que mostra o local:
Imagens obtidas com exclusividade por O TEMPO mostram o interior do terreno em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de Belo Horizonte, onde uma família teria sido mantida em cárcere privado. O local é alvo de buscas nesta quinta (2). Veja pic.twitter.com/AdfOVXKvaV
— O Tempo (@otempo) March 2, 2023
- Rotina das crianças em 'cativeiro'
Um quadro encontrado pela polícia indica como era a rotina das crianças supostamente mantidas no cativeiro. Conforme escrito no quadro, as crianças tinham uma rotina com horários intercalados entre os momentos de alimentação e de descanso. O quadro não aponta para um período do dia para em que elas deveriam estudar ou brincar.
A rotina, conforme escrito, começava às 7h, quando os menores acordavam, e se encerrava às 19h, quando eram colocadas para dormir. As orientações apontam para a existência de uma pessoa responsável por acompanhar as atividades das crianças.
- Ocultação de cadáver não é descartada
O crime de ocultação de cadáver não está descartado no terreno onde mães e filhos teriam sido mantidos em cárcere privado. Os bombeiros compareceram ao endereço devido à reclamação de moradores de um forte odor que, possivelmente, seria de cadáver.
“Na análise primária, antes dos cães adentrarem verificamos que se tratava de carcaça de animal que estaria em decomposição há 15 dias”, esclareceu o tenente Dutra, do Corpo de Bombeiros.
Apesar de o cadáver não ter sido localizado, não foi descartada a hipótese de que algum corpo tenha sido enterrado no lote. “Ainda não descartamos que haja outro crime, como possível ocultação de cadáver.
- Bebê resgatada de cárcere teria sido tirada da mãe ao nascer
Kátia chegou na capital mineira com os quatro filhos e o marido após vir de Mário Campos, também na Grande BH. A mulher estava grávida e logo após ser aliciada para uma proposta de trabalho, ainda na rodoviária, se mudou para São Joaquim de Bicas. Quando já estava no sítio, entrou em trabalho de parto e foi levada para uma maternidade.
“Quando retornou para o sítio, ela teve a bebê retirada com a alegação de que a assistente social do hospital havia entrado em contato pedindo o retorno”, disse o advogado Gregório Andrade. A bebê nasceu prematura e, por isso, demandava cuidados, porém Kátia informou que a filha estava bem.
A bebê, conforme dito pelo advogado, foi levada por Terezinha Pereira dos Santos, de 53 anos, que é apontada como a proprietária do sítio e que ainda não foi localizada, onde Kátia e a família ficaram em cárcere. “Kátia quis ir junto, mas foi impedida por Terezinha. Ela ficou seis meses sem ver a filha. Tudo isso me foi repassado pela Kátia em conversa que tive com ela nesta quinta-feira (2 de março)”, contou Andrade.
- Medo nos vizinhos do sítio
As pessoas que residem nas proximidades do possível "cativeiro de crianças" revelaram detalhes da rotina da casa e dos moradores do terreno, que possui diversas moradias pequeninas e uma construção com portas e passagens concretadas. Entretanto, todos eles quiseram falar em anonimato por medo, já que a dona do terreno onde o possível cativeiro foi localizado está desaparecida.
A mulher que no bairro atendia pelo nome de Maria, e em Belo Horizonte era conhecida como Terezinha, é suspeita de manter duas crianças de 6 e 9 anos em cárcere privado. Conforme os vizinhos, a mulher gostava de ser chamada de "Maria Mãe de Santo" e era conhecida por espalhar o pânico entre os moradores do bairro Imperador.
- Habeas corpus negado
Kátia Cristina, mãe das crianças encontradas em cárcere privado, teve negado, nesta quinta-feira (2), o pedido de habeas corpus. De acordo com o advogado Gregório Andrade, responsável pela defesa, o pedido de soltura não foi aceito pela falta da certidão de nascimento das crianças. Documento que ainda não teria sido localizado pela defesa.
- A investigação
A Polícia Civil abriu um inquérito para investigar o caso e, até o momento, a mulher que estaria cuidando e teria abandonado as crianças no local ainda não foi identificada e presa. O Ministério Público de Minas Gerais informou, por meio de nota, que o caso é investigado e que as informações estão sob sigilo.