O drama dos quatro irmãos que foram resgatados com sintomas de desnutrição em imóveis de Belo Horizonte e São Joaquim de Bicas, na região metropolitana, ganhou nesta sexta-feira (3 de março) uma linha do tempo que esclarece por onde passou a família desde sua chegada em Minas Gerais. A reportagem de O TEMPO conseguiu ter acesso aos resumos dos boletins de ocorrência registrados envolvendo a família.
Na quinta-feira (2 de fevereiro) a Polícia Militar (PM) descobriu na cidade da grande BH um cativeiro onde possivelmente a mulher e os filhos foram mantidos até a morte da quinta criança, de 4 anos, em fevereiro deste ano. De acordo com sargento Patrícia, da PM de Igarapé, também na região metropolitana, o primeiro registro policial localizado em nome do pai das crianças, Wellington Camelo Gomes, de 31 anos, indica que em 2020 eles estariam vivendo em Januária, no Norte de Minas Gerais.
"Temos o registro de um acidente de trânsito em que esse garotinho que morreu em São Joaquim de Bicas, de 4 anos, havia sido atropelado na ocasião", explica a policial. Já no dia 9 de outubro de 2021, Gomes acabou preso por desacato na cidade de João Pinheiro, na região Noroeste do Estado.
"A informação que tem na ocorrência é que ele estaria discutindo em voz alta com a esposa na rodoviária da cidade. Pessoas incomodadas chamaram a polícia e ele teria cometido um desacato e acabou preso", detalhou a sargento Patrícia. No dia, o pai das crianças apresentava sintomas de embriaguez e teria chamado os militares de "ordinários".
Chegada a BH
A policial militar, que participou da prisão da mãe na ocasião da morte do menino e chegou a conversar com Kátia Cristina, de 30 anos, conta que ela relatou que chegou em Belo Horizonte pouco antes de seu último bebê nascer, o que teria ocorrido no dia 5 de janeiro de 2022 na maternidade Sofia Fieldman, na capital mineira.
"No relato dela, depois do parto, ao retornar do hospital, ela não viu mais o pai dos filhos dela e que falaram para ela que ele teria morrido de Covid-19", detalhou a sargento. Entretanto, pouco mais de um mês depois, Gomes voltou a aparecer em uma ocorrência policial, desta vez já na cidade de Paracatu, também na região Noroeste de Minas.
No dia 26 de fevereiro de 2022, ele teria se desentendido com duas pessoas e foi agredido em um beco no bairro Paracatuzinho, sofrendo um corte no supercílio. "Depois ainda teve outra ocorrência em Paracatu, no dia 11 de março de 2022, um registro de extravio de documentos. Nessa ocasião o endereço dele já constava como este mesmo beco onde, pouco tempo antes, ele foi agredido", detalha Patrícia.
Avó de crianças pede ajuda para achar o filho
Nesta sexta, a mãe de Gomes, que preferiu não ser identificada por medo, disse, mais uma vez, que não recebe notícias do filho desde 2021, quando ele vivia com a família no Norte de Minas. Em áudio obtido por O TEMPO, a senhora pede ajuda para conseguir ter alguma informação sobre o paradeiro do filho.
"Com o tanto de reportagem que já saiu, para todo canto e ele não dá uma notícia, não responde, não fala nada? Isso tá errado. Quero que as autoridades tomem providência, eles têm que ir mais a fundo. Estou muito preocupada, e não saber aonde ele está, se ele morreu, se está vivo, é muito ruim. Eu quero ficar com meus netos. O advogado da Kátia falou que mandaria a passagem para a gente poder ir para BH, e o lugar pra gente ficar até resolver tudo, por que eu quero buscar meus netos", disse a mulher.
A mãe das crianças presta depoimento nesta sexta-feira (3 de março) em duas delegacias diferentes e, segundo Andrade, ele sequer foi notificado para acompanhar a oitiva. Os novos depoimentos acontecem um dia após a Polícia Militar (PM) descobrir o cativeiro. No local, a corporação e agentes do Corpo de Bombeiros encontraram um cômodo sem portas e janelas, com entrada apenas pelo telhado. Também foi confirmado que o mal cheiro, que incomodava vizinhos, seria de um cachorro morto. Porém, os bombeiros não descartaram a chance de haver cadáveres enterrados no local.
Entenda o caso
- O resgate
As crianças, de seis e nove anos, foram resgatadas na terça-feira, 21 de fevereiro, trancadas em um apartamento do bairro Lagoinha, na região Noroeste de Belo Horizonte. Segundo a Polícia Militar, elas estavam com sintomas de desnutrição e febre. Elas ficaram trancadas por três dias, sem alimentação.
Conforme informado pela polícia, as vítimas estavam magras, usavam roupas sujas e o ambiente onde elas estavam era escuro e encardido. Após o resgate, as crianças foram encaminhadas para o hospital Odilon Behrens, no bairro São Cristóvão, onde estão reaprendendo a comer devido à desnutrição severa.
- A denúncia
A denúncia foi feita por uma vizinha, a vendedora Poliana Pereira dos Santos, de 37 anos. Ela acionou a polícia depois que percebeu que elas estavam sozinhas no apartamento e sem o auxílio de familiares. Ela tentou alimentar as crianças por um buraco na parede do apartamento. A porta da residência onde elas estavam foi trancada com um cadeado e correntes.
- O local em que as crianças estavam
Conforme a denunciante, no local em que as crianças estavam, havia uma vasilha de comida com bicho. Em entrevista ao TEMPO, ela descreveu o cenário. "Encontramos muita sujeira, o cheiro era tão forte que, quando os policiais abriram a porta, nem eles aguentaram. A gente se emocionou muito quando vimos os dois, com os bracinhos fininhos, um deles sem conseguir nem falar. Aí começamos a chorar. Aqui tudo sujo, tudo podre, vasilha com bichos, colchão no chão", relatou.
- Menino sentiu cheiro de churrasco e pediu comida
Uma das crianças resgatadas pediu um pouco de comida para a vizinha depois que sentiu o cheiro do churrasco que era feito por ela. "Meu sobrinho estava andando de bicicleta aqui e, pelo buraquinho, ele viu e pediu um pouco de comida. Meu sobrinho, que tem mais ou menos a idade dele, veio até mim e contou. Fui até a porta e vi os dois, um deles disse que estava com fome e pediu churrasco para ele e o irmão. Pedi para ele abrir a porta, e ele falou que podia ser por ali mesmo. Falei que a vasilha não cabia no buraco. Ele, então, sugeriu que eu colocasse em uma sacolinha e disse 'eu estou com muita fome, me dá churrasco'", detalhou a vendedora Poliana dos Santos, de 37 anos, responsável por fazer a denúncia para a polícia.
A criança disse para a vendedora que elas estavam acompanhadas da avó. No entanto, o menino voltou a pedir comida durante a noite daquele dia, o que intrigou a vizinha e indicou de que elas estariam sozinhas.
- Os responsáveis pelas crianças
A investigação apontou que as crianças são filhas de uma mulher, de 30 anos, que foi presa por maus-tratos a outro filho, morto no último dia 6 de fevereiro. O caso foi registrado em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana da capital. De acordo com o boletim de ocorrência, no início do mês, a mulher levou o filho de 4 anos ao médico, mas a criança já estava morta. O menino chegou com lesões no olho, inchaço no pé e queimaduras no tornozelo.
O pai biológico das crianças, segundo a apuração do caso, teria morrido de Covid-19, em 2020. Em depoimento à polícia, uma das vítimas resgatadas no apartamento, na última terça-feira (21), informou que elas haviam vindo de São Joaquim de Bicas, na semana anterior ao resgate, e que a avó teria passado a noite de sábado (18) com elas, mas não retornou.
Três boletins de ocorrências, em nome dele, e datados de março de 2022 foram localizados. As ocorrências teriam sido confeccionadas nas cidades de Paracatu e João Pinheiro, ambas na região Noroeste de Minas, e se referiam à perda de documentos.
- Crianças resgatadas possuem duas irmãs que estão em abrigo
Duas meninas, de 1 e 2 anos, que são irmãs dos meninos resgatados na última terça-feira, dia 21 de fevereiro, no bairro Lagoinha, estão em um abrigo, sob a tutela do Estado. A informação foi confirmada ao TEMPO pelo Conselho Tutelar de São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de Belo Horizonte.
As meninas foram encaminhadas para unidade no dia 6 de fevereiro, depois que a mãe delas foi presa após levar um de seus cinco filhos, um garoto de 4 anos, com ferimentos para uma unidade hospitalar da cidade. O menino acabou morrendo devido à gravidade dos ferimentos que sofreu. No momento da prisão, a mulher teria omitido a existência dos dois filhos mais velhos, de 6 e 9 anos, resgatados na capital mineira.
- Advogados acreditam que ela foi vítima de escravidão
Apesar da suspeita de maus-tratos contra o filho de 4 anos que recai sobre Kátia, os advogados acreditam que ela e a família tenham sido vítimas de uma quadrilha que alicia pessoas e as força ao trabalho análogo à escravidão. O garotinho morreu.
- Cativeiro de crianças é encontrado
Cubículos com pequenas camas, sugerindo para um possível "cativeiro de crianças", foram encontrados na madrugada de 2 de março no lote em São Joaquim de Bicas onde uma família teria sido mantida em cárcere privado. A Polícia Militar (PM) compareceu ao local após um pedido de "ajuda" da advogada Andrezza Araújo, que chegou a defender Kátia Cristina, de 30 anos. Cheiro de 'carniça' foi sentido no 'cativeiro de crianças', no entanto era de cachorro morto.
Segundo a corporação, a "informante" relatou que no local onde o menino de 4 anos foi espancado e morto "existiria um compartimento trancado por telhas onde possivelmente poderiam estar outras crianças". Ao chegar no local, os militares do Grupo Especializado em Recobrimento (GER) encontraram os cubículos com "caminhas".
- Possibilidade de tortura
A Polícia Civil admitiu, nesta quinta-feira (2 de março), a possibilidade de as crianças resgatadas e do irmão delas, que morreu no início de fevereiro, terem sido torturados durante o cárcere privado no terreno em São Joaquim de Bicas.
Por meio de uma nota, a instituição policial informou que está apurando se o local "abandonado e possivelmente utilizado para manter crianças em cárcere privado e prática de torturas" teria relação com a investigação de maus-tratos que vitimaram a criança de 4 anos.
- Lugar onde crianças teriam ficado encarceradas
O cativeiro, que tinha acesso apenas pelo telhado, tinha um banheiro, uma televisão e uma espécie de portinhola que estava trancada e dava acesso a um cômodo superior. Um vídeo feito no local mostra militares quebrando uma entrada na parede e, também, o cômodo completamente escuro e fechado, que era coberto por telhas de amianto.
De acordo com a PM, o cômodo estava "caracterizado como local de cárcere" e fica em um ponto isolado do terreno, onde, se alguém gritasse, ninguém conseguiria ouvir. Assista ao vídeo que mostra o local:
Imagens obtidas com exclusividade por O TEMPO mostram o interior do terreno em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de Belo Horizonte, onde uma família teria sido mantida em cárcere privado. O local é alvo de buscas nesta quinta (2). Veja pic.twitter.com/AdfOVXKvaV
— O Tempo (@otempo) March 2, 2023
- Rotina das crianças em 'cativeiro'
Um quadro encontrado pela polícia indica como era a rotina das crianças supostamente mantidas no cativeiro. Conforme escrito no quadro, as crianças tinham uma rotina com horários intercalados entre os momentos de alimentação e de descanso. O quadro não aponta para um período do dia para em que elas deveriam estudar ou brincar.
A rotina, conforme escrito, começava às 7h, quando os menores acordavam, e se encerrava às 19h, quando eram colocadas para dormir. As orientações apontam para a existência de uma pessoa responsável por acompanhar as atividades das crianças.
- Ocultação de cadáver não é descartada
O crime de ocultação de cadáver não está descartado no terreno onde mães e filhos teriam sido mantidos em cárcere privado. Os bombeiros compareceram ao endereço devido à reclamação de moradores de um forte odor que, possivelmente, seria de cadáver.
“Na análise primária, antes dos cães adentrarem verificamos que se tratava de carcaça de animal que estaria em decomposição há 15 dias”, esclareceu o tenente Dutra, do Corpo de Bombeiros.
Apesar de o cadáver não ter sido localizado, não foi descartada a hipótese de que algum corpo tenha sido enterrado no lote. “Ainda não descartamos que haja outro crime, como possível ocultação de cadáver.
- Bebê resgatada de cárcere teria sido tirada da mãe ao nascer
Kátia chegou na capital mineira com os quatro filhos e o marido após vir de Mário Campos, também na Grande BH. A mulher estava grávida e logo após ser aliciada para uma proposta de trabalho, ainda na rodoviária, se mudou para São Joaquim de Bicas. Quando já estava no sítio, entrou em trabalho de parto e foi levada para uma maternidade.
“Quando retornou para o sítio, ela teve a bebê retirada com a alegação de que a assistente social do hospital havia entrado em contato pedindo o retorno”, disse o advogado Gregório Andrade. A bebê nasceu prematura e, por isso, demandava cuidados, porém Kátia informou que a filha estava bem.
A bebê, conforme dito pelo advogado, foi levada por Terezinha Pereira dos Santos, de 53 anos, que é apontada como a proprietária do sítio e que ainda não foi localizada, onde Kátia e a família ficaram em cárcere. “Kátia quis ir junto, mas foi impedida por Terezinha. Ela ficou seis meses sem ver a filha. Tudo isso me foi repassado pela Kátia em conversa que tive com ela nesta quinta-feira (2 de março)”, contou Andrade.
- Medo nos vizinhos do sítio
As pessoas que residem nas proximidades do possível "cativeiro de crianças" revelaram detalhes da rotina da casa e dos moradores do terreno, que possui diversas moradias pequeninas e uma construção com portas e passagens concretadas. Entretanto, todos eles quiseram falar em anonimato por medo, já que a dona do terreno onde o possível cativeiro foi localizado está desaparecida.
A mulher que no bairro atendia pelo nome de Maria, e em Belo Horizonte era conhecida como Terezinha, é suspeita de manter duas crianças de 6 e 9 anos em cárcere privado. Conforme os vizinhos, a mulher gostava de ser chamada de "Maria Mãe de Santo" e era conhecida por espalhar o pânico entre os moradores do bairro Imperador.
- Habeas corpus negado
Kátia Cristina, mãe das crianças encontradas em cárcere privado, teve negado, nesta quinta-feira (2), o pedido de habeas corpus. De acordo com o advogado Gregório Andrade, responsável pela defesa, o pedido de soltura não foi aceito pela falta da certidão de nascimento das crianças. Documento que ainda não teria sido localizado pela defesa.
- A investigação
A Polícia Civil abriu um inquérito para investigar o caso e, até o momento, a mulher que estaria cuidando e teria abandonado as crianças no local ainda não foi identificada e presa. O Ministério Público de Minas Gerais informou, por meio de nota, que o caso é investigado e que as informações estão sob sigilo.