Pedro Cardoso não se conforma. Sua verborragia alia o “dedo na ferida” do “sempre indignado” cartunista Henfil, para quem “o verdadeiro humor dá um soco no fígado de quem oprime”, com a obstinação em curá-la do ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, que vaticinou que “o impossível custa um pouco mais, e derrotados são só aqueles que baixam os braços e se rendem”.
Sem nunca edulcorar essa pílula, o ator carioca, conhecido pelo grande público como eterno intérprete do personagem Agostinho em “A Grande Família” (2001-2014), ecoa os ensinamentos de ambos em frases que revelam uma perspectiva particular do mundo e que encontraram abrigo no livro de crônicas “Dias Sem Glória”, publicado em parceria com Aquiles Argolo pela Barraco Editorial de Wesley Barbosa, dois homens negros e periféricos em busca do complexo lugar ao sol.
“Quando Wesley sugeriu publicar um livro de crônicas minhas e do Argolo fiquei radiante. Me senti rodeado de novos e improváveis amigos pelas claustrofóbicas circunstâncias da sociedade brasileira. Neste país cujos sortudos que nascem na porção rica da sociedade insistem em negar oportunidade aos que não tiveram a mesma chance, eu me sinto privilegiado de compartilhar com Aquiles e Wesley um convívio inesperado, um espaço de expressão comum, um livro, digno e honesto empreendimento comercial de nós três”, inicia Cardoso, feliz pela “honra de participar de uma tentativa de a pobreza brasileira produzir riqueza por si mesma e para si mesma”.
“Não acredito que os endinheirados brasileiros estenderão a mão àqueles de cuja pobreza depende a riqueza deles. A pobreza brasileira só tem uma chance, que é criar uma economia própria. A Barraco é uma tentativa de publicar livros de boa qualidade para o consumo de quem não tem uma livraria no seu bairro”, complementa.
O ator conjuga expressões de otimismo como “imensa alegria” e “esperança” ao afirmar que acredita “estar contribuindo para atenuar as desigualdades deste nosso país tão injusto”, o que referenda seu “sonho de vir a ser lido por quem, pela cisão histórica da nossa sociedade, talvez jamais viesse a conhecer” seus textos. Quando começou a escrever crônicas sobre política, Cardoso já havia se mudado para Cascais, no interior de Portugal, onde reside até hoje. Mas a distância geográfica não aliviou suas angústias com o país de origem, pelo contrário.
“Escrevi por desespero de impotência diante de um futuro que parecia ser inevitável. E foi. E ainda parece querer durar. Era, e ainda é, preciso entender o que vai na alma dos desalmados, dos torturadores, dos delirantes, dos rancorosos, dos frustrados, dos racistas. É preciso entender para ter argumentos de os rejeitar. Foi em busca de argumentos para me opor ao fascismo que eu comecei a escrever. Não sou escritor”, assegura o ator e roteirista.
Nesse exercício de compreensão diante da “ascensão da última vaga do eterno fascismo brasileiro”, escrever foi essencial para o artista. “O fascismo, nome de origem histórica porém hoje usado de modo genérico para designar movimentos autoritários de diferentes ideologias mas que guardam semelhanças com a violência do fascismo original, é uma ameaça à civilidade. Eu vivi o fim formal da última ditadura militar e logo percebi que outra estava sendo urdida. E estava, hoje está comprovado”, constata.
Sem “vaidades literárias”, o ator investe na “precisão em dizer” o que lhe ocorre. “Eu escrevo num impulso de indignação a partir das notícias que leio em diversos jornais pela manhã”, confirma ele, ciente de que “cada arte atinge o ser humano de um modo”.
Liberdade
Para Cardoso, “a literatura é, talvez, a mais livre de todas as artes”. “O leitor recebe do escritor apenas o texto. Cabe a ele imaginar a aparência dos personagens e dos lugares. A voz que soa na cabeça de quem lê é a sua mesma, e não a do escritor. O tempo da leitura, por mais rápido que se leia, é determinado pelos acontecimentos do que vai escrito. Nos livros não se inserem publicidades. O folhear de um livro não é prisioneiro de pesquisas de hábitos intelectuais nem de interesses. O livro é mecânico, mesmo o livro eletrônico tenta imitar, na aparência e na lógica, um livro físico. O livro é o meio de transporte que menos interfere na mensagem, me parece”, elabora.
A conclusão do artista é que “o tipo de bem que a literatura faz ao leitor, apenas ela é capaz de fazer”. “O mesmo vale para todas as artes, por conta de suas intransmissíveis características, cada uma delas é essencial. A literatura é um evento íntimo. Quem lê, lê sozinho. Propiciar esse contato consigo mesmo é uma das benesses da literatura, penso eu”.
Admitindo que as imbricações entre teatro e literatura o provocam “imensa perplexidade”, Cardoso faz algo raro. “Prefiro escapar a esta pergunta”, admite, para logo em seguida arriscar uma reflexão. “Acho que o teatro não é literatura, embora se valha da palavra falada. O texto de teatro é mero registro da palavra falada. Não sei se existe literatura da palavra falada. Tema espinhoso para minha ignorância acadêmica”.
Por outro lado, ele debate com gosto a polêmica em torno da chamada Inteligência Artificial que vem tomando o mundo. “Acho que a expressão ‘inteligência artificial’ é o nome publicitário de uma operação matemática feita por uma máquina chamada computador. Existe desde que o primeiro computador foi construído, apenas era de pouca qualidade para certos usos de então. O que hoje chamam de IA é nada mais do que a conta que um computador faz, numa velocidade imensa e informado de grande quantidade de variantes, da mais provável palavra que dará sentido à palavra anterior na construção de uma frase lógica. IA é o velho e conhecido banco de dados. Faculta-la criadora de sentidos por ela mesma é desonestidade dos empresários que a exploram”, dispara.
O ator reforça que “empresas de IA oferecem textos plagiados automaticamente de uma infinidade de seres humanos”. “É um negócio desonesto. Deveria ser proibida para efeito de criação de roteiros ou livros”. No entanto, ele não se mostra totalmente avesso à empreitada.
“Como toda tecnologia, tem a sua utilidade, e muita. Mas computadores são apenas máquinas de calcular. O cálculo que fazem é uma descoberta de seres humanos. Computadores são máquinas úteis, como o rádio. Importa o uso que é feito deles. Em seus primórdios, rádios foram usados para propaganda nazista. Hoje, computadores são usados para criar um mundo tão povoado de mentiras que é muito difícil distingui-las da verdade. Mas a culpa não é do computador nem do rádio. É dos seres humanos que fizeram mau uso deles”, afiança.
Ataque
Fora da televisão brasileira desde que protagonizou um quadro no programa Fantástico ao lado de sua esposa Graziella Moretto, pouco tempo depois do fim de “A Grande Família”, Pedro Cardoso credita à identificação o êxito de sua personagem e também do seriado. “Eu acho que o Agostinho faz sucesso porque todo o programa era de muito boa qualidade. E também porque eu sou, pela formação que me deu meu mestre Amir Haddad, um ator popular brasileiro. Não quero ter características de ator estadunidense nem europeu, nem chinês ou russo, nem de intelectual universitário. Gosto de ser um ator brasileiro e de representar o Brasil para ele mesmo com a maior fidelidade que eu possa”, diz. Essa vontade, no entanto, arrefeceu nos últimos anos.
“A indústria da televisão que eu trabalhei sofre hoje um ataque econômico do capital estadunidense. É um perigo e um desalento. Não há mais bons empregos. Acho que não. Ou, talvez, o meu vazio televisivo se deva, em parte, à ascensão do fascimo no Brasil. Televisão é negócio que busca agradar ao país inteiro. De que modo agradar inteiramente a um país cuja metade da população converteu-se a um delírio autoritário? O Brasil fascista produziu uma arte para fascistas consumirem. Eles se divertem assistindo programas que lhes confirmam as fantasias alucinadas”, critica o ator, que realiza um panorama comparativo deste e de outros momentos da história.
“Eu nunca antes havia me encontrado num desencontro tão violento. Antes havia diferenças políticas, ideológicas, existenciais. Hoje há uma agressão de quase metade do país à própria civilidade. Eu não tenho nenhum desejo de produzir arte como divertimento para adoradores da tortura. Eu não os quero divertir. Falam em pacificar o Brasil. Pacificaremos o Brasil quando descobrirmos, ou inventarmos, um novo Brasil. Este Brasil surgido de 350 anos de escravidão não tem futuro. Futuro terá o Brasil que se diferenciar de seu passado de maneira radical. Essa é a minha opinião. E razão do meu ostracismo em televisão, talvez”, sugere o ator, que segue em atividade na literatura e no teatro, com montagens recentes para as comédias de sucesso “O Alto-Falante” e “O Recém-Nascido”. “Não tenho do que reclamar”, arremata Cardoso.
Ator prega fim da ‘sexualidade masculina dominante’
Pedro Cardoso tem uma tese. “O avanço da extrema-direita, ou se fosse a esquerda, em Portugal ou no Brasil, ou em qualquer lugar, se dá pela apropriação das linguagens pelas quais comumente as pessoas se inteiravam da realidade: jornalismo e ficção”, aponta. O ator destaca que “a mesma linguagem que nos serve para dizer a verdade, igualmente nos serve para dizer a mentira”.
“Esteticamente, empresas tão distintas como o ICL e a Jovem Pan, ou a TV Globo e a FOX News, são extremamente semelhantes. O envolvimento da teologia com a política é o mesmo para a honestíssima Teologia da Libertação e para as desonestíssimas lojas-igrejas de falsa fé da maioria dos templos atuais. O mesmo eu diria sobre o programa de propaganda na TV aberta de um partido como o dos Trabalhadores e outro qualquer, tipo o PL, por exemplo”, analisa.
Ele debita na conta desta “igualdade do estilo da linguagem empregada” a responsabilidade pelo “mundo insuportavelmente confuso” que vivenciamos hoje. “E essa confusão foi intencionalmente produzida pelos autoritários, mesmo quando eles ainda eram sutis”, observa. “Hoje, todos falamos do mesmo modo, mesmo que estejamos dizendo diferenças radicais. E, neste modo que todos falam, há a marca da sexualidade masculina dominante, épica, heróica. Esta sexualidade igual de todos é que faz uma mesma linguagem servir igualmente para todos”.
A solução encontrada pelo artista, que se coloca ao lado das pessoas “de aspiração e apreço pela democracia”, é diferenciar-se dos autoritários. “Para tanto há que se cultivar uma outra sexualidade e comunicá-la. Mas quem quer deixar de ser homem? De ser esse clássico, histórico homem dominante? Quem quer ser apenas uma pessoa sem poder? Eu certamente acho que o lulismo é infinitamente mais saudável do que o bolsonarismo, sem discussão. Mas ambos se apresentam ao Brasil como salvadores machos da pátria, e, logo, se fazem indistinguíveis quanto a isto. E as pessoas que querem se confundir, se confundem”, avalia.
“É preciso encontrar a linguagem que seja a de uma nova sexualidade, de uma nova afetividade. E essa nova linguagem não é nenhuma das que já se conhece. Quando, e se, uma nova sexualidade vier a se expressar, ela produzirá a revolução estética que fará a sua linguagem evidentemente distinta da linguagem dominante atual. E a diferença entre o inferno fascista e a terra prometida da igualdade social, que é a liberdade, será evidente”, proclama.
Marxista, Cardoso segue a linha de que “a sexualidade surge da economia”. “Precisamos de uma evolução da economia de mercado para uma nova economia do razoável. A sexualidade do razoável surgirá da economia do razoável. Espero que a exaustão do planeta nos force a evoluir. Já aconteceu antes. Nos anos 1950 e 1960 em países ocidentais, em 1917 na Rússia, na Revolução Francesa, na Chinesa. Volta e meia, a ordem social se transforma. Está bem na hora de se transformar. Mas ainda não vejo sinais. A curto prazo, as chances eleitorais do fascismos são grandes. Devemos ao menos iniciar a procura por um outro mundo. Neste mundo deles, das redes antissociais e das inteligências artificiais e do excesso de consumo, eles são mais fortes do que nós. Problema é que estamos sem inspiração alguma sobre o mundo que poderia ser”, finaliza, deixando no ar um misto de indignação e esperança.