Sexualidade

Negar fogo: como o mito do sexo por obrigação pode atrapalhar a vida dos casais

Especialistas explicam porque transar mesmo sem estar com vontade acaba gerando mais dano do que benefício para os relacionamentos


Publicado em 09 de junho de 2023 | 05:30
 
 
 
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Casada há cinco anos, Vanderléia (nome fictício), 39, admite não entender como ela está sempre disposta a fazer sexo em qualquer ocasião.

"Tenho tesão o tempo todo. No começo do meu casamento, meu marido adorava isso e a gente parecia estar em lua de mel 24 horas por dia. Hoje, ele brinca que sou um pouco exagerada. Inclusive, já até confessou ter transado sem vontade muitas vezes só para me agradar", conta a atendente comercial.

Se por acaso você – assim como o marido de Vanderléia – é alguém sem a mesma disposição sexual de seu parceiro ou parceira, relaxe. Você não está sozinho.

Pelo menos é o que diz um estudo feito no ano de 2000 pelo Projeto Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.

A pesquisa, que entrevistou 2.835 indivíduos maiores de 18 anos de diferentes capitais do país – sendo 47% homens e 53% mulheres –, revelou que 34,6% dos brasileiros só faz sexo por obrigação.

Especialistas afirmam que essa pressão para nunca se "negar fogo na cama" não passa de uma construção social que quase sempre cria grandes dificuldades.

"Ninguém é obrigado a estar sempre disposto para o sexo. Essa ideia tem origem em expectativas irreais que foram moldadas ao longo dos anos. Para fazer sexo é preciso disposição, mas com a vida atribulada que todos temos no mundo moderno, o natural é que nosso desejo não esteja lá em cima o tempo todo", explica a sexóloga e terapeuta sexual Fernanda Viana.

"Essa noção vem de um conjunto de fatores, mas especialmente do estereótipo de masculinidade, que vincula o homem à força, ao poder, e à prontidão. É como esperar que ele estivesse sempre pronto para guerra. Além disso, 'negar fogo' carrega todo o estigma de distanciamento da masculinidade", complementa.

A psicóloga clínica e sexóloga Leni Oliveira diz que tesão e prazer não estão ligados apenas aos hormônios e questões físicas, e portanto, devem ser livres de qualquer tipo de imposição.

"Um bom sexo é inimigo da obrigação. A ideia de que as pessoas devem estar sempre dispostas a transar em toda chance que tiverem, acaba transformado o ato sexual em uma tarefa. O sexo, na verdade, tem tudo a ver com o ato do encontro, do prazer, e com o poder de desfrutar momentos de intimidade de uma forma única. Obviamente, qualquer obrigatoriedade vai matar essa essência", observa.

Diante disso, será que é saudável fazer sexo sem vontade só para comprazer nossos pares? A terapeuta sexual Fernanda Viana argumenta que não.

"Fazer sexo somente para agradar o parceiro é extremamente prejudicial para ambos. Nesse sentido, as mulheres estão em maior número. Como o sexo deve ser sempre consensual, quando feito somente para agradar o outro pode gerar insatisfação, dor, culpa, bloqueios e diversas formas de prejuízos emocionais", defende ela.

A psicóloga especialista em terapia sexual e sexualidade humana, Bruna Belo, reforça que ninguém precisa fazer nada "por comando".

"Qualquer coisa forçada não é legal. É claro que cenários perfeitos e contos de fadas não existem, e se, uma vez ou outra o sexo for feito somente para agradar o parceiro ou parceira e seu saldo for positivo, então, obviamente não haverá problema. Isso só não pode virar um padrão, pois sexo não é um presente, um objeto, uma troca, mas sim um desejo e um momento de prazer escolhido entre duas pessoas que se querem", sugere.

Pressão maior sobre os homens

No caso dos homens, a pressão para estar sempre pronto para a transar pode ser uma verdadeira prisão. Aliás, isso acaba muitas vezes gerando problemas sexuais, como as disfunções eréteis.

"As queixas de disfunções eréteis, na maioria dos casos, envolvem essas crenças errôneas de que o homem tem que dar conta de tudo e como se seu prazer fosse mensurado pela ereção", aponta Bruna Belo.

"Há um conceito de que pênis ereto vira um objeto de poder e um flácido é um sinal de falha. Na verdade, é preciso saber que antes da ereção, há um  processo de excitação, para que depois, com prazer, a ereção venha como um processo fisiológico. E não o contrário, de que a ereção surja antes de qualquer coisa. O problema é que esses mitos sexuais acabam se retroalimentando e geram um ciclo de falha sexual, experienciando emoções como ansiedade, tristeza, frustração, raiva e culpa – que no fim vão atrapalhar a resposta sexual", ensina a especialista.

Fernanda Viana diz que é preciso lembrar que não há nada de errado caso os homens não queiram sexo todos os dias.

"O homem não é uma máquina. O desejo sexual varia de pessoa para pessoa e pode oscilar de acordo com o humor, idade, questões de saúde, níveis de estresse, relacionamento, ou outras questões individuais. Não existe uma frequência considerada 'normal' que se aplica a todos, isso é um mito", destaca ela.

Vontade pode ser fonte de diálogo

E como agir quando um não está disposto e o outro insiste em transar?

"Falar com clareza e assertividade com o par é essencial nessas horas. É preciso verbalizar o que está se passando para que o outro saiba. Deixar claro que não se trata de falta de amor ou que perdeu o interesse mas, que o momento não é propício", aconselha Fernanda.

Leni Oliveira concorda e acrescenta:

"Na verdade, a gente acha que o sexo tem que ser uma coisa espontânea e não é bem assim. Muitas vezes a pessoa não está afim, mas começa a conversar ou pensar no assunto e aí o desejo pode surgir. Afinal de contas, vontade é um impulso que pode ser estimulado. Por isso, o importante não é ceder à insistências, mas sim, estar sempre consciente de nossos sentimentos em todo tipo de situação", observa.

Bruna Belo recomenda que uma negociação talvez seja o melhor caminho nesses momentos.

"Uma boa comunicação pode resolver qualquer dilema. Se o relacionamento caminha de forma saudável, a outra parte vai entender que não é um bom dia e irá buscar outras formas de estímulo e prazer. Mas se a pessoa já disse que não deseja e a outra continua insistindo, então é hora de aprender a afirmar assertivamente seus limites", aconselha Bruna antes de concluir:

"O principal é não tratar a situação como um negócio formal, mas como a oportunidade perfeita para se compreender os sentimentos um do outro".

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