BRASÍLIA – A Transparência Internacional e entidades estrangeiras que defendem os direitos humanos criticaram o uso da Lei Magnitsky pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para sancionar o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Trump aplicou a lei contra Moraes na quarta-feira (30/7). Em nota, a Transparência Internacional afirmou considerar “alarmante e inaceitável o uso seletivo da Magnitsky para fins políticos e econômicos”. “Essa prática tem se tornado cada vez mais frequente sob a atual administração Trump”, ressaltou.
A entidade disse que, no caso de Moraes, “tal medida apenas fomentará mais instabilidade política no Brasil”. Afirmou que a sanção recaiu sobre o ministro por ele ser o relator da ação contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por suspota tentativa de golpe de Estado de 2022.
A Transparência Internacional lembrou que tem feito críticas recorrentes ao STF, “tanto pela impunidade generalizada em casos de corrupção quanto por abusos de poder cada vez mais normalizados”. “Essas preocupações não devem ser ignoradas, pois representam uma ameaça real à democracia brasileira”.
No entanto, diz a entidade ressaltou que “nada disso justifica a interferência de um governo estrangeiro que desrespeita princípios fundamentais do direito, como a soberania nacional e a separação dos poderes”.
“O contraste é particularmente marcante quando se considera a estreita parceria da administração Trump com o presidente Nayib Bukele, de El Salvador — um líder amplamente denunciado por violações sistemáticas de direitos humanos, incluindo encarceramento em massa sem o devido processo legal, tortura e repressão à dissidência”, pondera.
“Bukele, notadamente, nunca enfrentou a ameaça de ser incluído na lista da Lei Global Magnitsky pela administração Trump”, completa a Transparência Internacional. a entidade também cita a decisão da administração Trump de remover o ministro húngaro Antal Rogán da lista de sanções da Lei Magnitsky.
“Rogán, figura de destaque no governo de Viktor Orbán, foi amplamente acusado de orquestrar esquemas de corrupção e de facilitar a captura do Estado na Hungria, beneficiando a si e seu partido às custas das instituições democráticas e do povo húngaro”, observa a entidade.
“Apesar de evidências claras de abuso sistêmico e corrupção, sua remoção da lista de sanções ilustra como a lei é aplicada de forma inconsistente — não apenas em relação a quem é incluído, mas também a quem é excluído”, prossegue a nota.
“Enquanto Bukele e Orbán são considerados aliados estratégicos a despeito de seus abusos, um magistrado brasileiro — por mais controverso que seja — que enfrenta interesses políticos e econômicos alinhados com Trump e sua rede é sancionado sob a Lei Global Magnitsky”, continua o texto.
“Esse duplo padrão revela a instrumentalização do discurso de direitos humanos para fins geopolíticos, minando os próprios princípios que a Lei Magnitsky afirma defender. A aplicação seletiva enfraquece ainda mais a credibilidade do regime global de sanções e reforça preocupações de que ele esteja sendo usado como ferramenta de conveniência política, e não de responsabilização baseada em princípios”, concluiu o comunicado.
Human Rights Watch também condena medida de Trump
Já a ONG Human Rights Watch, voltada para a promoção dos direitos humanos, citou também o tarifaço de Trump contra o Brasil.
“As sanções contra um ministro do Supremo Tribunal Federal e as tarifas impostas pelo governo Trump ao Brasil são uma clara violação da independência judicial, pilar da democracia”, diz nota da entidade.
“Se discordam de uma decisão, deveriam recorrer, não impor punições aos ministros e ao país”, acrescenta a Human Rights Watch no comunicado divulgado em suas redes sociais.
Esta é a primeira vez que a Lei Magnitsky é aplicada contra uma autoridade de um país democrático. Relatório do Congressional Research Service, agência de pesquisa legislativa nos EUA, mostra que 245 indivíduos e 310 entidades (como organizações e empresas) haviam sido sancionados pela Lei Magnitsky até novembro de 2024.
Até então, entre os alvos das sanções estavam violadores graves dos direitos humanos, como autoridades de regimes ditatoriais, integrantes de grupos terroristas e criminosos ligados a esquemas de lavagem de dinheiro e de assassinatos em série.
Entre eles, assessores diretos do príncipe Mohammed bin Salman, da ditadura da Arábia Saudita, responsabilizados pelo assassinato do jornalista Jamal Khashoggi. Regime que tem os Estados Unidos como aliado.
Na América Central, um famoso alvo da lei norte-americana foi Renel Destina, líder da gangue haitina Gran Ravine, que tem cometido crimes como roubos armados, estupros, assassinatos e destruição de propriedades. Em 2021, Destina e comparsas sequestraram um cidadão norte-americano por 14 dias.
Na América do Sul, o caso mais emblemático é do empresário Horacio Cartes, que foi presidente do Paraguai entre 2013 e 2018, e acabou punido após deixar o cargo, sob a acusação de envolvimento em esquemas de corrupção e lavagem de recursos.
Criada nos Estados Unidos em 2012, a Lei Magnitsky autoriza o país, por meio da Secretaria do Tesouro e da Secretaria de Estado, a impor sanções econômicas a estrangeiros envolvidos em corrupção ou violação grave dos direitos humanos.
A lei foi criada após a morte de Sergei Magnitsky, advogado russo que denunciou um esquema de corrupção envolvendo autoridades de seu país. Ele morreu em uma prisão de Moscou, em 2009. Inicialmente, a lei visava punir os responsáveis por essa morte.
Porém, em 2016, uma emenda ampliou seu alcance, permitindo que qualquer pessoa envolvida em corrupção ou abusos contra os direitos humanos pudesse ser incluída na lista de sanções. Não é necessário haver condenação oficial do acusado para aplicação das sanções.
No caso de Moraes, a justificativa oficial é a suposta violação “grave” de direitos humanos por parte do ministro. Em uma nota sobre a decisão, o Departamento do Tesouro dos EUA afirmou que Moraes “usou seu cargo para autorizar prisões preventivas arbitrárias e suprimir a liberdade de expressão”.
O comunicado acrescentou que o ministro “investigou, processou e reprimiu aqueles que fizeram discursos protegidos pela Constituição dos EUA, submetendo repetidamente as vítimas a longas detenções preventivas sem apresentar acusações”.
Ainda de acordo com o órgão, Moraes “minou os direitos de brasileiros e americanos à liberdade de expressão” e tem como “alvo políticos da oposição, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro”, réu no STF por suposta tentativa de golpe de Estado.
Mas a aplicação da norma a Moraes é controversa, pois o ministro não é acusado de corrupção e suas decisões judiciais são referendadas pelo Supremo em um regime democrático, assim reconhecido por diversas entidades internacionais, inclusive norte-americanas.
Além do Judiciário, seguem em funcionamento os poderes Executivo e Legislativo, com dois dos filhos de Jair Bolsonaro como integrantes de tal poder: o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e Eduardo Bolsonaro (PL-SP); este tem sido o grande responsável pelas sanções a Moraes.
Em 17 de julho, uma reportagem do jornal “The Washington Post” revelou que novas sanções contra o ministro estavam sendo articuladas pelo por Eduardo com integrantes do governo Trump. Eduardo comemorou nesta quarta a decisão dos EUA contra Moraes.
Moraes não tem bens nem contas nos EUA
Como resultado das sanções, todos os bens e participações de Moraes que estivessem nos EUA sob posse ou controle de cidadãos norte-americanos seriam bloqueados.
No entanto, Moraes não tem nem nunca teve bem, dinheiro ou propriedade nos Estados Unidos. Além disso, o visto dele norte-americano do magistrado está vencido há dois anos e ele não fez nada para renová-lo.
A aplicação da Lei Magnitsky impede Moraes de usar cartões de crédito emitidos por instituições financeiras americanas ou vinculados, como Visa e Mastercard.
Mas o ministro ainda poderá fazer pagamentos por meio de cartões emitidos por bancos brasileiros com bandeiras nacionais, como Elo ou Hipercard, que não dependem do sistema financeiro dos EUA. Também há as redes financeiras internacionais que operam fora da jurisdição norte-americana.
Visto revogado por causa de ação contra Bolsonaro
Em 18 de julho, na primeira represália do governo Trump a Moraes, o Departamento de Estado revogou o visto do ministro e familiares próximos. O secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, citou como justificativa o processo que corre no STF contra Bolsonaro, por tentativa de golpe.
A medida foi anunciada horas após Bolsonaro ser alvo de uma operação da Polícia Federal, que realizou buscas e apreensões e determinou a utilização de tornozeleira eletrônica e recolhimento noturno entre 19h e 6h.
As medidas cautelares foram determinadas no inquérito no qual Eduardo Bolsonaro é investigado pela sua atuação junto ao governo Trump para promover medidas de retaliação contra o governo brasileiro e ministros do STF e barrar o andamento da ação penal sobre a suposta trama golpista.
Em março deste ano, Eduardo pediu licença do mandato parlamentar e foi morar nos Estados Unidos, sob a alegação de perseguição política. A licença terminou em 20 de julho.