BRASÍLIA – A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ratificou, nesta quarta-feira (3/9), a decisão do ministro Mauro Campbell de afastar de seus cargos, por seis meses, o governador do Tocantins, Wanderley Barbosa (Republicanos), e sua esposa, Karynne Sotero Campos, secretária estadual Extraordinária de Participações Sociais.
Formada pelos 15 ministros mais antigos do tribunal, a Corte Especial do STJ é responsável por, entre outras coisas, julgar as ações penais contra governadores e outras autoridades.
O governador e a primeira-dama do Tocantins foram alvos da segunda fase da Operação Fames-19, deflagrada pela Polícia Federal (PF) na manhã de quarta-feira com o objetivo de aprofundar as investigações sobre desvios de recursos públicos destinados ao enfrentamento da pandemia no estado, em 2020 e 2021.
Durante a pandemia, Wanderlei Barbosa era o vice-governador do Tocantins – o estado era governado por Mauro Carlesse, que viria a ser afastado por corrupção (leia abaixo). Barbosa ficou com a Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (Setas), órgão encarregado de socorrer a população afetada economicamente pela crise de saúde pública.
A maior parte das verbas para atender a população tocantinense no enfrentamento das consequências da covid-19 foi direcionada para a Setas, em 2020 e 2021. Na época, foram contratadas várias empresas. Algumas haviam sido abertas pouco tempo antes das contratações e elas não tinham objetivo social de fornecimento de alimentos.
A investigação mostrou que, apesar de não ter qualquer experiência com o “objeto social distinto do fornecimento de alimentos”, essas empresas receberam “a totalidade do valor contratado, sempre em somas de grande vulto, entregando, em contrapartida, apenas parte do quantitativo estipulado, tendo havido a inexecução parcial ou até mesmo integral dos contratos de fornecimento”.
A PF diz que o governo do Tocantins pagou mais de R$ 97 milhões em contratos suspeitos de fornecimento de cestas básicas e frangos congelados, com prejuízo superior a R$ 73 milhões aos cofres públicos. Os valores supostamente desviados foram ocultados por meio da construção de empreendimentos de luxo, compra de gado e pagamento de despesas pessoais dos envolvidos.
Pousada construída com dinheiro público desviado
Um desses empreendimentos, segundo a PF, é uma pousada da família do governador Wanderlei Barbosa no distrito de Taquaruçu, um dos principais pontos turísticos de Palmas. A estrutura de luxo estaria sendo erguida, e quase pronta, com dinheiro desviado de recursos públicos para a compra de cestas básicas durante a pandemia.
A pousada Pedra Canga, que fica a cerca de 30km da capital tocantinense, além de quartos e bangalôs, tem decks de madeira e ambiente integrado à área de vegetação da serra de Taquaruçu. Ela está no nome do filho do governador, Rérison Antonio Castro Leite, superintendente do Sebrae Tocantins, segundo a PF.
Em trecho da decisão para permitir o desencadeamento da operação da PF na quarta-feira, o ministro Mauro Campbell citou um diálogo entre o filho de Wanderlei Barbosa e o chefe de gabinete do governador, em 21 de maio de 2024, que confirmaria o desvio do dinheiro público.
“Rérison orienta [o chefe de gabinete] a deixar todos os apontamentos averbados na JUCETINS, referentes à Pousada Pedra Canga, em seu nome, ratificando o escopo atual e contemporâneo de dissimulação do capital ilicitamente auferido no governo do Estado, para ser empregado em sua edificação”, diz o magistrado.
Em nota, advogados de Rérison afirmam que ele não foi alvo da operação desta quarta-feira e que, como não é servidor do governo estadual, “não tem nenhuma vinculação com os crimes investigados”. Já o Sebrae Tocantins disse, também em nota, não ter relação com o esquema investigado.
PF encontra R$ 700 mil na casa de secretária estadual
Nesta quarta-feira, mais de 200 policiais federais cumpriram a 51 mandados judiciais de busca e apreensão, além de outras medidas cautelares, na capital do Tocantins, Palmas, e nas cidades de Araguaína (TO), João Pessoa (PB), Imperatriz (MA) e no Distrito Federal. Dez dos mandados foram executados em gabinetes de deputados estaduais.
Em um endereço da secretária do Trabalho e Desenvolvimento Social do Tocantins, Valderez Castelo Branco, agentes apreenderam cerca de R$ 700 mil. O dinheiro estava em uma casa da secretária em Araguaína. Ela foi deputada estadual entre 2014 e 2022, quando destinou emendas para a compra de cestas básicas em contratos investigados.
Conforme a investigação, o nome da secretária está em uma planilha de controle para pagamento de propina. Ela é tratada como parte de um grupo de deputados que de forma “voluntária e conscientemente, encaminharam emendas parlamentares em troca do recebimento de vantagens indevidas”.
A PF disse em nota que a nova fase da Operação Fames-19 permitirá aos investigadores buscar provas do desvio de recursos destinados ao estado, inclusive por meio de emendas parlamentares, durante o estado de emergência em saúde pública e assistência social decretado em virtude da pandemia da covid-19.
A primeira fase da Operação Fames-19 foi deflagrada em 21 de agosto de 2024. Na ocasião, agentes federais fizeram buscas e apreensões em endereços ligados a Wanderley Barbosa e a outros suspeitos de receber propinas de empresas que o governo estadual contratou, de forma fraudulenta, para fornecerem bens e serviços, incluindo cestas básicas.
Ex-marido da primeira-dama seria o negociados das propinas
Uma dessas empresas deu R$ 1.359.074,12 a Paulo César Lustosa Limeira, ex-marido da primeira-dama Karynne Sotero Campos, segundo a PF. Ele é apontado como o responsável pela negociação de propina em contratos do governo do Tocantins.
Durante a investigação, a PF que, entre julho de 2020 e julho de 2022, Paulo César recebeu R$ 1.359.074,12 e fez saques de R$ 665.015,63, “havendo indícios de seu envolvimento em atos de lavagem que se seguiram aos supostos desvios”.
Os investigadores usaram dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) na investigação e descobriram que apenas uma das empresas fez 58 depósitos para Paulo César, totalizando R$ 521.263,81.
Na decisão que autorizou a operação da PF na quarta-feira, o ministro Mauro Campbell afirma que a participação de Paulo César no desvio de verbas era garantido a partir de sua proximidade com a primeira-dama e que tinha “amplo acesso” à cúpula do governo estadual.
“O teor dos diálogos evidencia, a um só tempo, não apenas o trânsito e a influência de Paulo César Lustosa no governo do Estado, como também comprova o intenso envolvimento de Karynne Sotero, primeira dama do Estado, e de seu esposo, o governador do Tocantins, Wanderlei Barbosa Castro, na medida em que todas as contratações dependiam da boa vontade do poder executivo estadual, propiciada não apenas pela intermediação conduzida por Karynne, como também, pela ciência e aquiescência de Wanderlei”, escreveu o ministro.
Esquema sistemático e bem organizado de desvio de recursos
Durante a sessão da Corte Especial, o ministro Mauro Campbell justificou o afastamento de Barbosa e da esposa afirmando que ambos integraram “um esquema sistemático e bem organizado de desvio de recursos públicos”, conforme revelam documentos e mensagens de celulares recuperadas de celulares apreendidos no curso da investigação.
“Conforme observado durante as investigações, Wanderley Barbosa, com o auxílio de sua esposa, Karine Campos, e com o apoio de servidores públicos, empresários e deputados estaduais, instituiu no seio do governo do Tocantins um amplo esquema de desvio de recursos públicos por meio do fornecimento de cestas básicas”, sustentou Campbell ao pedir que os demais ministros da Corte Especial ratificassem sua decisão.
“Foram reunidos fartos indícios de que o amplo esquema de desvio de recursos públicos por meio do fornecimento de cestas básicas contou com a ciência e aquiescência do próprio senhor Wanderley Barbosa, que se valeu de empresários próximos e, sobretudo, de assessores especiais, para montar uma estrutura sistemática e bem organizada de desvio de recursos públicos do governo do Estado do Tocantins”, acrescentou Campbell.
O ministro se diz convencido de que os recursos públicos desviados, “na casa de dezenas de milhões de reais”, foram “destinados a finalidades diversas, que iam [do pagamento] de despesas pessoais do governador a investimentos em atividades agropecuárias ou empreendimentos imobiliários colocados em nome de seus filhos”.
Além de afastar Barbosa e sua esposa temporariamente dos cargos públicos que ocupavam, Campbell também os proibiu de acessar prédios de órgãos públicos estaduais, incluindo o Palácio do Araguaia, sede do Poder Executivo de Tocantins, e a Assembleia Legislativa.
O ministro ainda determinou a suspensão do exercício de atividade econômica por um ano de 18 empresas investigadas e proibiu sete dos investigados de terem contato com outros investigados, acusados, testemunhas ou servidores públicos de instituições governamentais.
Desde 2006, nenhum governador eleito terminou o mandato
Com o afastamento de Wanderley Barbosa, assumiu o cargo o vice-governador Laurez Moreira (PSD). Ainda na quarta-feira, logo após assumir como governador em exercício do Tocantins, ele exonerou todos os secretários do primeiro escalão da gestão estadual. Os nomes foram publicados no Diário Oficial, com mais de 50 exonerações.
Desde 2006, nenhum governador eleito no Tocantins terminou o mandato. Isso se deve a afastamentos, cassações, prisões e até pedidos de impeachment relacionados a investigações policiais que apuraram corrupção e outros crimes. O último que levou o mandato até o fim foi Marcelo Miranda (MDB) – comandou o estado de 2003 a 2006.
Miranda foi reeleito, mas não conseguiu concluir o segundo mandato. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou o então governador em 2009, após identificar irregularidades na campanha política de 2006. Além de deixar o cargo, Miranda também ficou inelegível por oito anos.
Miranda conseguiu voltar ao governo do Tocantins, após ser eleito em 2014, tendo como vice Cláudia Lélis. Quatro anos depois, a Polícia Civil apreendeu um avião com R$ 500 mil em dinheiro e santinhos da chapa Miranda-Lélis em Piracanjuba (GO).
O caso levou à nova cassação de Miranda, em 2018. Até hoje, ele é o único governador brasileiro a ser cassado duas vezes no mesmo cargo. Em setembro de 2019, foi preso pela PF na operação 12º Trabalho, que investigou o suposto desvio de R$ 300 milhões do governo estadual. O ex-governador passou 147 dias na cadeia.
Como a vice-governadora Cláudia Lélis também foi cassada, pela terceira vez um deputado estadual, no cargo de presidente da Assembleia, assumiu o governo estadual. No caso, Mauro Carlesse (Agir), que em 2018, Carlesse venceu duas eleições, uma suplementar, em junho daquele ano, e outra geral, em outubro.
Mas Carlesse também logo foi alvo de operações por corrupção, que interromperam seu mandato. Ele acabou afastado do cargo pelo STJ. Como afastamento era temporário, em 2021, sem apoio político e enfrentando um processo de impeachment, Carlesse renunciou em 2022.
Por causa dos processos judiciais, Carlesse foi preso em dezembro de 2024, sendo solto em fevereiro de 2025. Ele foi acusado de planejar uma fuga para o exterior por causa das investigações de que é alvo. Responde em liberdade com medidas cautelares.
Com a renúncia de Carlesse, Wanderlei Barbosa assumiu o governo do Tocantins em 2021. Disputou e ganhou as eleições no ano seguinte. ficou no cargo até a última quarta-feira, quando foi afastado por ordem do STJ.
Governador afastado nega irregularidades e Republicanos fala em solidariedade
Em nota, Barbosa afirmou que o pagamento das cestas básicas ocorreu entre 2020 e 2021, durante a gestão de seu antecessor, o ex-governador Mauro Carlesse, quando ele “não era ordenador de nenhuma despesa relacionada ao programa de cestas básicas”.
“Reforço que [já como governador], por minha determinação, a Procuradoria-Geral do Estado e a Controladoria-Geral do Estado instauraram auditoria sobre os contratos mencionados e encaminharam integralmente as informações às autoridades competentes. E que, além dessas providências em curso, acionarei os meios jurídicos necessários para reassumir o cargo de governador, comprovar a legalidade dos meus atos e enfrentar essa injustiça, assegurando a estabilidade do Estado e a continuidade dos serviços à população”, concluiu Barbosa ao classificar a decisão do STJ como “precipitada”.
Já o partido Republicanos afirmou, também em nota, que manifesta “solidariedade ao governador Wanderlei Barbosa, certos de que ele terá a oportunidade de apresentar os esclarecimentos necessários e provar sua inocência”.
O nome da operação desta quarta-feira, Fames-19, faz referência à insegurança alimentar ocasionada pela pandemia, que ações públicas se destinavam a combater, mas supostamente se tornaram meio de desvio de recursos públicos. Fames significa fome em latim e 19 faz alusão ao período pandêmico.