Mais um mês após a morte de seu filho de 4 anos sob suspeita de maus-tratos, em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de Belo Horizonte, Wellington Camelo, homem de 31 anos que é pai de três das cinco crianças que eram mantidas em cárcere privado e que era apontado como "morto por Covid", foi encontrado, vivo, e trabalhando em uma fazenda na cidade de João Pinheiro, na região Noroeste de Minas Gerais.
Desde a prisão de Kátia Cristina, de 30 anos, que é a mãe dos meninos, em fevereiro deste ano, Camelo era apontado às autoridades como morto. Entretanto, nenhum registro da morte dele teria sido encontrado. A partir daí, a mãe do homem chegou a pedir ajuda para encontrá-lo, afirmando que não tinha notícias dele há cerca de 2 anos.
Porém, conforme adiantou O TEMPO no início do mês, boletins de ocorrência na cidade do interior de Minas indicavam que ele ainda estaria vivo. Na última semana, o jornal Sputnik Voz do Povo, que atua na região, conseguiu localizar Wellington Camelo e fez uma rápida entrevista com o homem. Em 2021, o jornalista resgatou a família, que estava vivendo nas ruas da cidade.
Durante a conversa com Jeferson Sputnik, jornalista, radialista e fundador do site de notícias locais, ele alegou que foi abandonado pela mulher, que fugiu levando os filhos, após 7 anos de relacionamento. Ele também negou ter levado a companheira para o parto, em um hospital de BH, e sumido em seguida.
"Eu não fui atrás por que eu não sabia onde ela tava. Eu não tive coragem de sair por aí, igual um mendigo, atrás dela", disse o homem, que, chegou a chorar ao ver a foto do filho de 4 anos, que morreu.
Camelo também disse ter conversado por telefone com uma pessoaque seria "assistente social" ou do "conselho tutelar". "A minha mãe conversou com ela, que falou que a Kátia estava com uma sapatão, com uma mulher. Nunca mais tive contato com ela, falei no celular do meu patrão com a mulher da assistência social", disse ao Sputinik Voz do Povo.
A suposta assistente social com quem o homem diz ter conversado pode ser uma das filhas de Terezinha, mulher que seria a responsável por ter trancado os dois meninos de 6 e 9 anos em um apartamento no bairro Lagoinha.
Conforme adiantou O TEMPO ainda em fevereiro, essa pessoa que dizia ser "assistente social" de São Paulo teria chegado a mandar fotos para a mãe de Wellington Camelo, que vive em Valparaíso de Goiáis. "Ela falava que a Katia estava em abrigo e os meninos estavam no lugar onde ficam crianças para serem adotadas. Ela me mandava fotos das criança sentadas numa mesa, merendando. Eu só não via a Katia", detalhou a avó dos meninos na época.
Homem disse querer cuidar das crianças
Ainda durante a entrevista concedida ao Sputnik Voz do Povo, Wellington Camelo chegou a dizer que tem vontade de ficar com as crianças, inclusive os dois meninos mais velhos, que não são filhos biológicos dele.
"O que eu sinto mais vontade é de pegar os meninos pra mim, até os dois dela mesmo. E o outro que nasceu lá eu não sei nem o nome", afirmou o homem.
As filhas dele, de 1 e 2 anos, estão no abrigo em São Joaquim de Bicas desde o dia 6 de fevereiro, quando foram resgatadas pela Polícia Militar. Já os dois meninos de 6 e 9 anos, receberam alta na última semana e, também em um abrigo, agora se preparam para voltar a estudar.
Relembre o caso
- O resgate
As crianças, de seis e nove anos, foram resgatadas na terça-feira, 21 de fevereiro, trancadas em um apartamento do bairro Lagoinha, na região Noroeste de Belo Horizonte. Segundo a Polícia Militar, elas estavam com sintomas de desnutrição e febre. Elas ficaram trancadas por três dias, sem alimentação.
Conforme informado pela polícia, as vítimas estavam magras, usavam roupas sujas e o ambiente onde elas estavam era escuro e encardido. Após o resgate, as crianças foram encaminhadas para o hospital Odilon Behrens, no bairro São Cristóvão, onde estão reaprendendo a comer devido à desnutrição severa.
- A denúncia
A denúncia foi feita por uma vizinha, a vendedora Poliana Pereira dos Santos, de 37 anos. Ela acionou a polícia depois que percebeu que elas estavam sozinhas no apartamento e sem o auxílio de familiares. Ela tentou alimentar as crianças por um buraco na parede do apartamento. A porta da residência onde elas estavam foi trancada com um cadeado e correntes.
- O local em que as crianças estavam
Conforme a denunciante, no local em que as crianças estavam, havia uma vasilha de comida com bicho. Em entrevista ao TEMPO, ela descreveu o cenário. "Encontramos muita sujeira, o cheiro era tão forte que, quando os policiais abriram a porta, nem eles aguentaram. A gente se emocionou muito quando vimos os dois, com os bracinhos fininhos, um deles sem conseguir nem falar. Aí começamos a chorar. Aqui tudo sujo, tudo podre, vasilha com bichos, colchão no chão", relatou.
- Menino sentiu cheiro de churrasco e pediu comida
Uma das crianças resgatadas pediu um pouco de comida para a vizinha depois que sentiu o cheiro do churrasco que era feito por ela. "Meu sobrinho estava andando de bicicleta aqui e, pelo buraquinho, ele viu e pediu um pouco de comida. Meu sobrinho, que tem mais ou menos a idade dele, veio até mim e contou. Fui até a porta e vi os dois, um deles disse que estava com fome e pediu churrasco para ele e o irmão. Pedi para ele abrir a porta, e ele falou que podia ser por ali mesmo. Falei que a vasilha não cabia no buraco. Ele, então, sugeriu que eu colocasse em uma sacolinha e disse 'eu estou com muita fome, me dá churrasco'", detalhou a vendedora Poliana dos Santos, de 37 anos, responsável por fazer a denúncia para a polícia.
A criança disse para a vendedora que elas estavam acompanhadas da avó. No entanto, o menino voltou a pedir comida durante a noite daquele dia, o que intrigou a vizinha e indicou de que elas estariam sozinhas.
- Os responsáveis pelas crianças
A investigação apontou que as crianças são filhas de uma mulher, de 30 anos, que foi presa por maus-tratos a outro filho, morto no último dia 6 de fevereiro. O caso foi registrado em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana da capital. De acordo com o boletim de ocorrência, no início do mês, a mulher levou o filho de 4 anos ao médico, mas a criança já estava morta. O menino chegou com lesões no olho, inchaço no pé e queimaduras no tornozelo.
O pai biológico das crianças, segundo a apuração do caso, teria morrido de Covid-19, em 2020. Em depoimento à polícia, uma das vítimas resgatadas no apartamento, na última terça-feira (21), informou que elas haviam vindo de São Joaquim de Bicas, na semana anterior ao resgate, e que a avó teria passado a noite de sábado (18) com elas, mas não retornou.
Três boletins de ocorrências, em nome dele, e datados de março de 2022 foram localizados. As ocorrências teriam sido confeccionadas nas cidades de Paracatu e João Pinheiro, ambas na região Noroeste de Minas, e se referiam à perda de documentos.
- Crianças resgatadas possuem duas irmãs que estão em abrigo
Duas meninas, de 1 e 2 anos, que são irmãs dos meninos resgatados na última terça-feira, dia 21 de fevereiro, no bairro Lagoinha, estão em um abrigo, sob a tutela do Estado. A informação foi confirmada ao TEMPO pelo Conselho Tutelar de São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de Belo Horizonte.
As meninas foram encaminhadas para unidade no dia 6 de fevereiro, depois que a mãe delas foi presa após levar um de seus cinco filhos, um garoto de 4 anos, com ferimentos para uma unidade hospitalar da cidade. O menino acabou morrendo devido à gravidade dos ferimentos que sofreu. No momento da prisão, a mulher teria omitido a existência dos dois filhos mais velhos, de 6 e 9 anos, resgatados na capital mineira.
- Advogados acreditam que ela foi vítima de escravidão
Apesar da suspeita de maus-tratos contra o filho de 4 anos que recai sobre Kátia, os advogados acreditam que ela e a família tenham sido vítimas de uma quadrilha que alicia pessoas e as força ao trabalho análogo à escravidão. O garotinho morreu.
- Cativeiro de crianças é encontrado
Cubículos com pequenas camas, sugerindo para um possível "cativeiro de crianças", foram encontrados na madrugada de 2 de março no lote em São Joaquim de Bicas onde uma família teria sido mantida em cárcere privado. A Polícia Militar (PM) compareceu ao local após um pedido de "ajuda" da advogada Andrezza Araújo, que chegou a defender Kátia Cristina, de 30 anos. Cheiro de 'carniça' foi sentido no 'cativeiro de crianças', no entanto era de cachorro morto.
Segundo a corporação, a "informante" relatou que no local onde o menino de 4 anos foi espancado e morto "existiria um compartimento trancado por telhas onde possivelmente poderiam estar outras crianças". Ao chegar no local, os militares do Grupo Especializado em Recobrimento (GER) encontraram os cubículos com "caminhas".
- Possibilidade de tortura
A Polícia Civil admitiu, nesta quinta-feira (2 de março), a possibilidade de as crianças resgatadas e do irmão delas, que morreu no início de fevereiro, terem sido torturados durante o cárcere privado no terreno em São Joaquim de Bicas.
Por meio de uma nota, a instituição policial informou que está apurando se o local "abandonado e possivelmente utilizado para manter crianças em cárcere privado e prática de torturas" teria relação com a investigação de maus-tratos que vitimaram a criança de 4 anos.
- Lugar onde crianças teriam ficado encarceradas
O cativeiro, que tinha acesso apenas pelo telhado, tinha um banheiro, uma televisão e uma espécie de portinhola que estava trancada e dava acesso a um cômodo superior. Um vídeo feito no local mostra militares quebrando uma entrada na parede e, também, o cômodo completamente escuro e fechado, que era coberto por telhas de amianto.
De acordo com a PM, o cômodo estava "caracterizado como local de cárcere" e fica em um ponto isolado do terreno, onde, se alguém gritasse, ninguém conseguiria ouvir. Assista ao vídeo que mostra o local:
Imagens obtidas com exclusividade por O TEMPO mostram o interior do terreno em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de Belo Horizonte, onde uma família teria sido mantida em cárcere privado. O local é alvo de buscas nesta quinta (2). Veja pic.twitter.com/AdfOVXKvaV
— O Tempo (@otempo) March 2, 2023
- Rotina das crianças em 'cativeiro'
Um quadro encontrado pela polícia indica como era a rotina das crianças supostamente mantidas no cativeiro. Conforme escrito no quadro, as crianças tinham uma rotina com horários intercalados entre os momentos de alimentação e de descanso. O quadro não aponta para um período do dia para em que elas deveriam estudar ou brincar.
A rotina, conforme escrito, começava às 7h, quando os menores acordavam, e se encerrava às 19h, quando eram colocadas para dormir. As orientações apontam para a existência de uma pessoa responsável por acompanhar as atividades das crianças.
- Ocultação de cadáver não é descartada
O crime de ocultação de cadáver não está descartado no terreno onde mães e filhos teriam sido mantidos em cárcere privado. Os bombeiros compareceram ao endereço devido à reclamação de moradores de um forte odor que, possivelmente, seria de cadáver.
“Na análise primária, antes dos cães adentrarem verificamos que se tratava de carcaça de animal que estaria em decomposição há 15 dias”, esclareceu o tenente Dutra, do Corpo de Bombeiros.
Apesar de o cadáver não ter sido localizado, não foi descartada a hipótese de que algum corpo tenha sido enterrado no lote. “Ainda não descartamos que haja outro crime, como possível ocultação de cadáver.
- Bebê resgatada de cárcere teria sido tirada da mãe ao nascer
Kátia chegou na capital mineira com os quatro filhos e o marido após vir de Mário Campos, também na Grande BH. A mulher estava grávida e logo após ser aliciada para uma proposta de trabalho, ainda na rodoviária, se mudou para São Joaquim de Bicas. Quando já estava no sítio, entrou em trabalho de parto e foi levada para uma maternidade.
“Quando retornou para o sítio, ela teve a bebê retirada com a alegação de que a assistente social do hospital havia entrado em contato pedindo o retorno”, disse o advogado Gregório Andrade. A bebê nasceu prematura e, por isso, demandava cuidados, porém Kátia informou que a filha estava bem.
A bebê, conforme dito pelo advogado, foi levada por Terezinha Pereira dos Santos, de 53 anos, que é apontada como a proprietária do sítio e que ainda não foi localizada, onde Kátia e a família ficaram em cárcere. “Kátia quis ir junto, mas foi impedida por Terezinha. Ela ficou seis meses sem ver a filha. Tudo isso me foi repassado pela Kátia em conversa que tive com ela nesta quinta-feira (2 de março)”, contou Andrade.
- Medo nos vizinhos do sítio
As pessoas que residem nas proximidades do possível "cativeiro de crianças" revelaram detalhes da rotina da casa e dos moradores do terreno, que possui diversas moradias pequeninas e uma construção com portas e passagens concretadas. Entretanto, todos eles quiseram falar em anonimato por medo, já que a dona do terreno onde o possível cativeiro foi localizado está desaparecida.
A mulher que no bairro atendia pelo nome de Maria, e em Belo Horizonte era conhecida como Terezinha, é suspeita de manter duas crianças de 6 e 9 anos em cárcere privado. Conforme os vizinhos, a mulher gostava de ser chamada de "Maria Mãe de Santo" e era conhecida por espalhar o pânico entre os moradores do bairro Imperador.
- Habeas corpus negado
Kátia Cristina, mãe das crianças encontradas em cárcere privado, teve negado, nesta quinta-feira (2), o pedido de habeas corpus. De acordo com o advogado Gregório Andrade, responsável pela defesa, o pedido de soltura não foi aceito pela falta da certidão de nascimento das crianças. Documento que ainda não teria sido localizado pela defesa.
- A investigação
A Polícia Civil abriu um inquérito para investigar o caso e, até o momento, a mulher que estaria cuidando e teria abandonado as crianças no local ainda não foi identificada e presa. O Ministério Público de Minas Gerais informou, por meio de nota, que o caso é investigado e que as informações estão sob sigilo.