Investigação

Caso Marielle: PF e MP esperam resolver outros crimes das milícias e do bicho

Relatório final sobre as mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes traz informações sobre outros assassinatos impunes no RJ e possível pagamento de mesadas a policiais civis

Por Renato Alves
Publicado em 25 de março de 2024 | 10:11
 
 
 
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Com os assassinatos da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes dados como solucionados, a Polícia Federal (PF) espera avançar na solução de outros crimes atribuídos às milícias e máfia do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Eles contam como grande trunfo a memória de Ronnie Lessa.

Por isso, Lessa, um ex-policial militar que se tornou matador de aluguel a serviço de diferentes grupos criminosos, é tratado como arquivo vivo pela PF e pelo Ministério Público do RJ, que pretende usar declarações do assassino confesso de Marielle e Anderson para elucidar outros crimes de pistolagem que se misturam com a política.

O relatório final do Caso Marielle, que tem 479 páginas e foi tornado público no domingo (24), após a prisão dos três acusados de serem os mandantes do  duplo homicídio ocorrido há seis anos, traz anexos com informações de Lessa sobre outros 11 crimes que ele confessou ter praticado. 

Paralelo à investigação da morte de Marielle e Anderson, Lessa foi condenado por tráfico internacional de armas. Em fevereiro de 2017, a Receita Federal apreendeu com o ex-policial 16 “quebra-chamas” para fuzis AR-15 no Aeroporto Internacional do Galeão. O equipamento neutraliza o clarão dos disparos e é de uso restrito, dependendo de autorização do Exército para ser comprado.

Um ano depois do crime, a Polícia Civil do Rio de Janeiro apreendeu na casa de Alexandre Motta Souza, um amigo pessoal de Lessa, 117 fuzis desmontados. Foi a maior apreensão de armas do Estado. O arsenal estava no condomínio Vivendas da Barra, onde Lessa morava. 

Foi a partir da delação premiada de Lessa que a PF conseguiu dar os passos mais importantes na investigação sobre as mortes de Marielle e Anderson. Lessa confessou ter feito os disparos que mataram ambos, com parceria de Élcio Queiroz, que dirigia o carro usado no crime – eles estão presos desde 2019.

Por fim, o ex-PM também apontou como mandantes o deputado federal Chiquinho Brazão, seu irmão Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE), e o ex-chefe da Polícia Civil do Rio Rivaldo Barbosa, presos no último domingo e mantidos em cárcere com aval do Supremo Tribunal Federal (STF).

As informações de Ronnie Lessa foram confirmadas por Élcio Queiroz, que também firmou acordo de delação premiada. “Procuramos corroborar tudo que é falado pelos colaboradores, inclusive uma colaboração corrobora com a outra”, ressaltou o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, em entrevista após a operação de domingo.

Ele destacou ainda que as informações de Lessa e Queiroz foram confrontadas com outros depoimentos e provas físicas obtidas pelos investigadores, como documentos que mostram locais e horários em que estavam os envolvidos no crimes nas datas e nos locais apontados pelos dois colaboradores. 

Ex-chefe da Polícia Civil do Rio teria recebido propinas para dificultar outras investigações

Ainda no bojo da investigação do Caso Marielle, a PF aponta, em um relatório com 479 páginas, que Rivaldo Barbosa fez fortuna recebendo propina quando chefiava a Delegacia de Homicídios da Capital (DHC), cargo que ocupava antes de assumir a direção-geral da instituição.

O relatório final da PF sobre o Caso Marielle diz que Rivaldo “mantém relações ilícitas com os principais milicianos e contraventores do Estado do Rio de Janeiro”, e que diversos homicídios relacionados a esses grupos criminosos não foram investigados pela DHC, entre 2016 e 2021.

“De modo que o aporte da demanda pela garantia da impunidade em torno do homicídio de Marielle Franco seria apenas mais uma que apareceu no espúrio balcão de negócios da DH naquela gestão”, ressalta o relatório da PF.

Em depoimento à PF, o miliciano Orlando Curicica disse que havia um sistema de pagamento mensal ao comando da Delegacia de Homicídios para não investigar os assassinatos cometidos a mando de chefes do jogo do bicho e das milícias. 

O pagamento funcionava como uma mesada e variava entre R$ 60 mil a R$ 80 mil. Segundo Curicica, remessas adicionais deveriam ser pagas nos casos dos crimes que deixavam provas e rastros.

Um dos casos citados é o da execução de Geraldo Antônio Pereira, o Pereira, ligado à milícia e morto em um tiroteio em uma academia de ginástica no Recreio dos Bandeirantes em 2016. Para deixar o crime impune, integrantes da equipe da DHC receberam R$ 300 mil, de acordo com Curicica.

Outros casos delatados pelo miliciano são o de Marcos Falcon, presidente da Portela morto a tiros em setembro de 2016; e o do contraventor Haylton Carlos Gomes Escafura, assassinado com a mulher em um hotel de luxo na Barra da Tijuca em 2017.

O relatório da PF sobre o Caso Marielle afirma que a DHC recebeu de uma pessoa ligada ao contraventor Rogério Andrade cerca de R$ 300 mil para não “perturbar” os prováveis envolvidos na execução de Pereira.

Mulher de Rivaldo Barbosa é apontada como “testa de ferro” do marido em “empresas de fachada” 

A mulher de Rivaldo Barbosa, Erica Andrade de Almeida Araújo, foi alvo de buscas e apreensão no domingo. Ela é suspeita de ser “testa de ferro” do marido em “empresas de fachada” para retardar a elucidação de crimes, como no caso da morte de Marielle Franco. 

A PF ressalta que o patrimônio do casal é incompatível com a renda. Rivaldo e a mulher podem responder na Justiça por organização criminosa, corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Na operação deflagrada no último domingo, agentes apreenderam celulares, computadores e documentos em endereços dos investigados. A PF espera encontrar mais provas contra os investigados e informações sobre outros crimes cometidos por eles e outras pessoas relacionadas às milícias e ao jogo bicho.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, afirmou que a investigação do Caso Marielle e a prisão dos possíveis mandantes é um “triunfo expressivo do Estado brasileiro”. Ele alertou que as apurações relatam o “modus operandi da milícia no Rio” e o “entrelaçamento com os órgãos públicos”.

Milícias aumentam poder financiando políticos

Historicamente, para manter seu lucrativo negócio ilegal, os chefões do jogo bicho do Rio de Janeiro corromperam integrantes da Polícia Civil. Já as milícias surgiram e cresceram comandadas por policiais e ex-policiais militares – expulsos da corporação, muitos por corrupção. 

Os grupos paramilitares dominam um quarto do território do Estado do Rio de Janeiro. E foi-se o tempo que lucravam apenas com a venda de “segurança” e serviços como fornecimento de internet e TV a cabo piratas. Cobrando percentual por quase tudo oferecido pelos comerciantes, também faturam com o tráfico de drogas e até negócios imobiliários.

Também é sabido que os tentáculos das milícias e do jogo do bicho cooptam políticos, controlando não só o comércio, como os votos das áreas onde atuam. Os irmãos Brazão, que integram um clã que domina a política de Duque de Caxias,  tiveram nomes vinculados a milícias que controlam a Baixada Fluminense.

E há aqueles que estão diretamente ligados aos chefões do bicho e das milícias. O suplente de Chiquinho Brazão é Ricardo Abrão, ex-presidente da Beija-Flor e sobrinho de Anísio Abraão David, patrono da escola de samba de Nilópolis e um dos integrantes da cúpula do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Se Brazão for cassado, Abrão vai assumir uma cadeira na Câmara dos Deputados.

 

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